19/07/2013

A cozinha balzaquiana


Reler um clássico é sempre ler outro livro, visto que não se esgota à primeira leitura. Assim é com Balzac das Ilusões Perdidas, romance sobre a prostituição do jornalismo. 
A sua ironia sobre o papel da crítica não tem preço: “Não se critica um droguista como se criticam chapéus, coisas da moda, teatro ou negócios de arte. O cacau, a pimenta, as pinturas, as madeiras de tingir, o ópio, não podem se depreciar”. 

Contrario sensu, a crítica não participa apenas da valorização commodities. Participa da sua renovação, pois às vezes é necessário combater a mesmice, fazer estardalhaço, agitar a pasmaceira. “Uma das maiores tolices do comércio parisiense é querer encontrar o sucesso nos análogos, quando ele está nos contrários. Em Paris sobretudo, o sucesso mata o sucesso”.  E dirá ele que “a tarefa de um escritor é conceber as paixões”, isto é, dar-lhes forma, mostra-las ao público. E o próprio crítico se projeta como “necessário”: “a polêmica é o pedestal das celebridades”. Não há saída para a crítica burguesa, como indica o próprio título do romance. 

A Balzac, como a outros escritores da sua época, não escapa o artificialismo da cozinha parisiense, então modelo para a burguesia do mundo todo. Balzac contrasta com ela a comida das províncias, baseada na “necessidade” e na tradição, e aqueles restaurantes que, mesmo em Paris, escapam aos modismos. Faz o elogio do restaurante Flicoteaux, “templo da fome e miséria” com aquele “ar antigo e respeitável que anunciava um profundo desprezo pelo charlatanismo das aparências externas, essa espécie de anúncio feito para os olhos em detrimento do ventre por quase todos os restaurantes de hoje”. (No instagram o olho promove a abolição do paladar no juízo sobre o prato).

E hoje, quais são as ilusões que ainda não perdemos no campo da culinária? Certamente serão frutos da fé de que jornais e revistas desempenham um papel crítico que amadurece o nosso entendimento sobre o mundo.

Como manter uma opinião crítica sobre vinhos, por exemplo, se a revista na qual se escreve é quase toda financiada por anúncios de vinícolas? Como falar mal da comida de um restaurante se, vira e mexe, lá se come a convite ou em eventos públicos? Como ir ao lançamento de um novo produto sem dar uma “notinha” sobre a celebração? O que Balzac mostrava era justamente o contubérnio entre a crítica e o comércio. As revistas de gastronomia tipo-Caras são exatamente isso. E não estou falando de corrupção, de jabá - que é outro problema - mas, sim, da auto-destituição do papel púbico em nome do qual vieram à luz

E não é um fenômeno apenas nacional. Como disse François Simon, “a crítica está muito amiga dos chefs. E o reflexo está no prato: a comida não anda lá muito interessante. Boas críticas ajudam a construir bons chefs. Hoje, no geral, a crítica está muito gentil, muito próxima da cozinha”. Nesse mundo de gentilezas fenece o pensamento independente. Tirante rarissimas exceções, não se lê crítica por aqui. Apenas o endosso de endereços estabelecidos como destinos culinários pelos guias dos jornais e revistas. E lá vai a nossa “multidão parisiense” atrás deles!

Talvez seja o momento de desmontar essa lógica. Há mais valor nas apreciações pontuais, num só produto encontrado perdido aqui ou ali, do que no juízo abrangente sobre essas instituições comerciais que chamamos restaurantes. Talvez a maioria deles esteja irremediavelmente em descompasso com o gosto. Identificar um bom churro, um bom sanduíche, uma salada com personalidade - tudo parece mais valioso do que a padaria, a doceria ou o restaurante, num momento de excesso de mesmice como agora. 

Enfim, não há civilização que mereça esse nome se esta se baseia nos viveurs, para repetir Balzac: esses ricos ou pobres que “viviam com uma inacreditável despreocupação, intrépidos comedores, bebedores mais intrépidos ainda”. Para eles faz-se hoje a crítica gastronômica.

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