26/11/2013

A volta aos ingredientes - I


Depois do excesso de ênfase nas técnicas, eis que a gastronomia volta ao terreno do qual nunca deveria ter se afastado: os ingredientes. Embora as técnicas possam merecer destaques temporários, um dia elas se generalizam, banalizando-se, deixando de ser aquele diferencial que caracteriza a cozinha de quem quer que seja. E Brillat-Savarin  se deu conta de que o brilho e a sedução culinária dependiam também dos atributos das matérias-primas, apontando o uso da baunilha como elemento decisivo na construção do “coqueterismo” alimentar. Matéria-prima, nesse caso, é aquela in natura, embora a definição de matéria-prima e produto dependa apenas da posição que ocupem no processo de produção, seja no começo, seja no final.

É verdade que tudo o que falamos sobre o ingrediente conta na sua apreciação. A rigor, se ele não gerar uma “fala” não se culturaliza, isto é, não abandona aquele terreno da materialidade pura onde mora desde o mais remoto tempo biológico, de interesse restrito. Os atributos do que comemos são sempre expressos em adjetivos. Uma laranja doce, um vinho aromático, uma farinha tipicamente brasileira e assim por diante. Desse modo, a gastronomia pertence ao terreno da linguagem. Uma linguagem que reforça o entendimento social sobre os aspectos sensíveis da experiência alimentar. E somos capazes de dosar, culturalmente, a própria experiência: a pimenta muito ardida se opõe à pimenta agradável, enquanto que, para outros povos, o que nos parece excesso é tomado como justa medida. 

O entendimento sobre a justa medida é o objeto do discurso gastronômico, e ousamos falar em “harmonização” quando queremos marcar a convergência entre múltiplas sensações que emanam do mundo natural devidamente “domesticado”. No entanto, é ai também que reside o engano, a ilusão, na medida em que confundimos a nossa própria sensibilidade pessoal com um padrão cultural mais amplo, contraditório, do qual nos vemos momentaneamente como a justa medida. 


O adjetivo “brasileiro” para os ingredientes é bastante problemático. Afinal, eles, sejam quais forem, pouco tem a ver com o processo de formação da nação, salvo talvez no caso de coisas como a feijoada, uma elaboração simbólica muito complexa da qual participaram, além do povão, as elites intelectuais da primeira metade do século XX.

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