03/01/2014

A cozinha lacônica de Gera di Giovanni


Foi um privilégio receber um dos 500 exemplares do livro Cozinha lacônica, de Gera di Giovanni, fora do comércio. Não sou bibliófilo, e o privilégio vem tanto da gentileza como da possibilidade de mergulhar num universo culinário que não é o meu, embora as receitas sejam comuns. O que o livro dispõe como único é o “ma façon” da cozinha de Gera, e estou convencido de que se as pessoas se dispusessem a escancarar como cozinham para as pessoas próximas teríamos uma culinária completamente diversa dessa que se orienta pelo main stream
Sim, porque nada tem valor nos livros de receita num mundo onde a informação está disponível para todos senão aquele modo particular como nos apropriamos das coisas. Como você frita um ovo? Como faz sua omelete? O que faz com minialcachofras? Como faz figo rami? Isso é o que diferencia as pessoas na cozinha! E conversar sobre esse fazer é mais produtivo do que escolher receitas raras.
Por muitas leituras - e até por dogmatismo - não acredito em receitas. Mas guardo na mente a primeira leitura de Bocuse e sua afirmação de que receitas são proporções, não quantidades: se mudo de moleiro tenho que modificar o meu pão, dizia ele. E no último natal, no sítio de uma amiga, pude ver o jovem padeiro Richard Ildevert, professor da escola Lenotre, trabalhar numa lição prática sobre essa coisa das proporções. Usando farinha normal, farinha “0” ou “00” os pães eram formulados de modo diverso, pois o que conta é a quantidade final de gluten na massa. E ele gostou do fermento Taquara! Quando gente já ouvi dizendo que nossas farinhas não prestam, preferindo a “00” sem saber por que! E o tal do levain então? Do mesmo modo um sorvete de manga - que possui aproximadamente 12% de açúcar - necessita x% de açúcar adicional; outra fruta exigiria outro tanto e assim por diante. Relações entre coisas mutáveis não podem ser expressas em quantidades fixas, é óbvio.
O meu figo rami é diferente daquele feito por Gera. Ele usa 1/2 quilo de açúcar para 3 caixas de figo. Eu utilizo menos da metade desse açúcar e coloco, ainda, uma pequena xícara de café. No mais é igual. Agora, pergunto: essa diferença gera 2 receitas? Claro que não: gera duas maneiras de fazer, entre tantas outras que resultariam numa coisa que, com licença, poderíamos chamar igualmente de figo rami. O seu gnocchi não leva ovo. O meu leva gema, e assim por diante. A base da gastronomia é a comparação, e seria necessário um exército de pessoas dispostas a comparar ambos os produtos em provas às cegas para se chegar a uma conclusão - sempre subjetiva - de qual é o melhor. Coisa que, digamos, não tem grande graça.
A graça está em saber como Gera cozinha: como escolhe as coisas, como as prepara. Todos têm os seus modos, mas poucos se dispõem a revela-los aos outros, e por mais que cozinhar seja “imitar”, sempre introduzimos modificações naquilo que fazemos. Ai morrem as receitas e começa a criatividade.
A cozinha doméstica é a cozinha das idiossincrasias, das especificidades, pois se cozinha “para o outro” que é sempre um outro concreto, conhecido na sua subjetividade e, portanto, singular. Mas cozinhar – especialmente “cozinhar bem”  –  é saber empenhar o corpo no trabalho culinário cujo resultado é esperado num círculo pequeno de comensais, muito mais do que “seguir” qualquer receita, pois esta jamais substituirá a destreza diante da intenção finalística. E esse empenho é tão mais reconhecido e gratificante quando se faz como uma ode à subjetividade dos comensais. Por isso, não raro surpreendemos os chefs-masculinos elogiando o que chamamos de “cozinha das mães e avós” como modelo de excelência. Os pais aprenderam o gosto de cada filho para o ponto do bife, do ovo frito; o tempero do feijão; a cocção do arroz; as preferências de sobremesas, etc, coisas que aqueles que cozinham em restaurantes não sabem. 
Desse modo, a clivagem entre a cozinha doméstica e a gastronomia - que é essencialmente fruto da comparação entre vários trabalhos culinários na esfera pública - contrapõe as duas cozinhas. A cozinha doméstica não gera a “gastronomia” no sentido usual do termo; mas fornece as métricas através das quais somos levados a julgar o trabalho  dos restaurantes. Assim, “fazer para o outro” – essa doação através de um intermediário material como a comida –  permanece a marca domestica do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidade. Recuperar a “história do fazer para o outro”, suas formas e motivações, parece ser o único caminho para fixar os contornos da cozinha doméstica no mundo industrial. 
Os tradicionalistas tem dificuldades em reconhecer que os próprios ingredientes são produtos históricos, conformações da natureza que são fruto de processos seculares de escolhas que vão, aos poucos, introduzindo pequenas variações nas espécies domésticas. Eles preferem se fixar nas receitas, nos rituais do comer, considerando as matérias-primas coisas da natureza.
Mas poderíamos perguntar: qual o móvel da estética culinária? A resposta mais simples é: trata-se do desejo de agradar nas relações conviviais. Cozinhamos da melhor maneira que conseguimos para agradar os outros. Se isso é verdade, cabe a pergunta: por que, em vez de estarmos sós, cozinhar para nós mesmos, preferimos comer em companhia de outros? “Ao comermos juntos, sentimos prazer já que nosso cérebro nos dá prazer ao procedermos desse modo: no decorrer das gerações, estabeleceram-se lentamente circuitos cerebrais que conduzem ao sentimento de ‘prazer’ quando as circunstâncias nos colocam em volta de uma mesa. Melhor ainda, procuramos organizar nossa vida para termos a oportunidade de nos encontrar em volta de uma mesa”, escreveu, com razão, Hervé This.
As receitas de Gera di Giovanni são um convite para ingressar em sua casa, em sua cozinha - bastante rica em preparações; são, portanto, um capítulo da hospitalidade, mais do que um livro de “how to do” universal. O escancaramento do ma façon é, sem dúvida, um ato raro de generosidade.


2 comentários:

Márcia M. B. Boin disse...

Nunca havia lido algo tão correto sôbre a verdadeira culinária; que delícia de leitura! Expressa com exatidão, o que torna as refeições mais simples em grandes e espetaculares banquetes!
Resumindo: cada "cozinheiro" imprime no que está fazendo p/ ser servido, o seu modo de ser, o seu carinho, o melhor de si mesmo! ... e vc "captou" e deixou registrado aqui, esse segredo.
Parabéns!

Sabrina Romano disse...

Como você consegue ser tão pertinente? Suas intervenções em palestras sempre deixam o expositor perplexo; e o mais incrível é que suas perguntas sempre são simples (“mas você ainda não falou quais são essas farinhas...”), básicas (“mas afinal quais são as madeiras usadas?”), e ainda assim pega o pessoal de calças curtas!

Além de sagaz, você é realmente muito bom com as palavras; esse texto está delicioso, vou ter de repetir...

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