06/01/2014

A crítica gastronômica e suas várias faces


Os “balanços do ano” são sempre injustos. Por exagero ou por falta. Prudentemente, Alhos suspendeu em 2013 seu Alho de Ouro  alegando que foi um ano de lata. Por que a gastronomia entrou na berlinda do crítico, justamente quando houve tanto happening, prêmios e celebrações em torno dela?
Acredito que, em primeiro lugar, houve uma fissura explícita no que se entende por  “gastronomia”: de um lado a celebração da culinária, a glamourização e exacerbação do comer, aliando publicitários, mídia (inclusive instagram), indústria e certas figuras emblemáticas desse mundo que avançou várias casas em 2013; por outro, a radicalização da consciência de que, afinal, a “gastronomia” só interessa como o conhecimento centrado na relação íntima do comedor com o seu prato. Este último parece ser o caso de Alhos, assim como de Constance Escobar - só para ficar no webmundo. A mediocrização de Paladar e Comida também deu passos largos, até por conta da crise que os jornais vivem de modo mais amplo e, assim, não é forçar muito a barra dizer que houve, de fato, uma polarização que tende a alinhar a todos.
Pode-se dizer que, em tese, todos acham que a excelência dos produtos é uma qualidade que os alimentos devam ter, mas os dois grupos antes indicados parecem ter entendimentos diversos sobre isso. Numa época na qual as fronteiras entre o artesanato e a indústria se tornaram tão borradas, é difícil mesmo identificar  o que é o trabalho criativo e original de um chef, materializado no que serve em seu restaurante, sem o concurso da indústria. Mas o papel da crítica gastronômica é exatamente este: identificar o que alguém agregou a uma preparação, que não seja redutível à simples escolha de ingredientes nem à reprodução mecânica de uma receita qualquer. Por isso, o produto industrial é aquele que mais dificilmente revela o trabalho do chef, pois na sua feição “pronta” resolve muitos passos que ele haveria de enfrentar, exibindo a sua perícia. O uso do leite condensado, o uso do pré-mix  (em sorvetes, por exemplo) são casos claros dessas “facilidades” que a mídia teima em ignorar ao mesmo tempo em que lhe estende a aplicação do termo “artesanal”.
A turma da glamourização-de-tudo resolve esse dilema introduzindo o conceito “gourmet” no próprio mundo da indústria. É uma coisa bem ousada essa de supor que a gastronomia possa levantar de uma esteira na linha de produção. Mas parece uma coisa democrática essa produção em série, mesmo que destrua uma das condições do luxo moderno, que é a exclusividade. Na outra ponta, e até porque se exauriu o caráter novidadeiro das técnicas modernas, a pesquisa dos chefs corre desesperadamente em direção aos ingredientes “exclusivos”, e a crítica gastronômica tem dificuldade de superar o deslumbramento que a própria “nova natureza” traz à mesa, o seu caráter “sustentável”, etc. O que é um bom bacupari, realçado à mesa em suas qualidades? Não é fácil responder...
Seja como for, e tentando diferenciar os discursos que se apresentam como “crítica gastronômica”, embora possam se alinhar com a polarização acima descrita, convêm fazer um esforço de tipificação e simplificação, indicando estilos diversos de tratamento:
Crítica bulímica - é aquela que confunde criação, inovação, com novidade. Ela corre atrás do novidadeiro, diz se gosta ou não gosta, com fundamentação apenas subjetiva, e o vomita para abrir espaço para uma nova....novidade! Ela nada ensina além da provisoriedade de tudo.
Crítica tradicionalista - a que confronta uma produção culinária com um certo ideal, supostamente consagrado pela tradição. Vê “degeneração” em tudo o que se move, ainda que para “melhor”. Exalta bobamente qualquer coisa que remeta à “brasilidade”, por exemplo. Ela expressa a chamada “crise de identidade”, ou como a entende... Move-a a idéia de que se comia melhor no passado e, portanto, comeremos sempre pior. É pessimista por natureza.
Crítica categorial - lembra aquele poema irônico de Drummond sobre o confronto entre os poetas municipal, estadual e federal. Ela discute à exaustão se o “melhor” dry martini é o proposto por Hemingway ou Buñuel. Qual o melhor negroni? Qual a melhor carbonara? O melhor hambúrguer? É um raciocínio que se aplica a tudo, e não leva a nada esclarecedor por trabalhar o nível mais raso da crítica: a percepção do gosto/não gosto como sintoma do bom/ruim.
Crítica celebrativa - não está tanto preocupada com o objeto em sí da crítica gastronômica - a preparação culinária - mas com o seu trajeto social: o que entrou na moda, as “tendências”, os prêmios e reconhecimentos, enfim, a aceitação de um produto pela sociedade, ainda que promovida pela poderosa indústria do marketing. Tudo isso parece-lhe dizer da qualidade do que se come. Confunde a qualidade comunicacional com aquela gustativa. E é aqui que mora o perigo do jabá...
Crítica substancial - é aquela capaz de reconhecer a extensão e complexidade do seu objeto - a preparação culinária, claro - antes de tecer juízos pontuais. Ela enxerga o produto final imerso no longo processo ou cadeia produtiva, que vai da origem das matérias-primas até a concepção do chef e sua execução. Sua qualidade maior está na eventual capacidade de isolar, e expor, a singularidade do trabalho criativo, mesmo quando não goste do resultado final, sem que seu juízo pessoal destrua a percepção do que o chef procurou comunicar.
Eu prefiro este último dos cinco estilos de crítica, embora seja pequeno o número de analistas que a praticam. E está claro que eles são minoritários porque, afinal, parecem não servir àquilo que o main stream espera do crítico. Paciência. Eles vieram para confundir, como diria Chacrinha, o velho guerreiro.

Será muito bom se em 2014 pudermos avançar na compreensão dos estilos de crítica (através dos quais absorvemos boa parte da própria culinária) e identificar seus impactos sobre a formação do público da gastronomia, pois estou convencido de que quanto mais discussão consciente e menos oba-oba melhor comeremos! Chega de lixo de qualquer tipo, não é?

3 comentários:

Anônimo disse...

Bela levantada de lebre meu caro amigo, espero que haja humildade nos críticos para entenderem e aceitarem seu texto tão oportuno neste inicio de 2014.
Gastronomicalement,

Anônimo disse...

Dória,
obrigado pela referência.
Sigamos e encontremos sentidos.
Abraços!

Receitas Salgadas disse...

As críticas gastronômicas de fato são muito importantes, porém não me deixo levar somente por isso, acho importante você também poder ter a sua impressão.

Porém nunca me decepcionei com os críticos!

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