Os “balanços do ano” são sempre injustos. Por exagero ou por falta. Prudentemente, Alhos suspendeu em 2013 seu Alho de Ouro alegando que foi um ano de lata. Por que a gastronomia entrou na berlinda do crítico, justamente quando houve tanto happening, prêmios e celebrações em torno dela?
Acredito que, em primeiro lugar, houve uma fissura explícita no que se entende por “gastronomia”: de um lado a celebração da culinária, a glamourização e exacerbação do comer, aliando publicitários, mídia (inclusive instagram), indústria e certas figuras emblemáticas desse mundo que avançou várias casas em 2013; por outro, a radicalização da consciência de que, afinal, a “gastronomia” só interessa como o conhecimento centrado na relação íntima do comedor com o seu prato. Este último parece ser o caso de Alhos, assim como de Constance Escobar - só para ficar no webmundo. A mediocrização de Paladar e Comida também deu passos largos, até por conta da crise que os jornais vivem de modo mais amplo e, assim, não é forçar muito a barra dizer que houve, de fato, uma polarização que tende a alinhar a todos.
Pode-se dizer que, em tese, todos acham que a excelência dos produtos é uma qualidade que os alimentos devam ter, mas os dois grupos antes indicados parecem ter entendimentos diversos sobre isso. Numa época na qual as fronteiras entre o artesanato e a indústria se tornaram tão borradas, é difícil mesmo identificar o que é o trabalho criativo e original de um chef, materializado no que serve em seu restaurante, sem o concurso da indústria. Mas o papel da crítica gastronômica é exatamente este: identificar o que alguém agregou a uma preparação, que não seja redutível à simples escolha de ingredientes nem à reprodução mecânica de uma receita qualquer. Por isso, o produto industrial é aquele que mais dificilmente revela o trabalho do chef, pois na sua feição “pronta” resolve muitos passos que ele haveria de enfrentar, exibindo a sua perícia. O uso do leite condensado, o uso do pré-mix (em sorvetes, por exemplo) são casos claros dessas “facilidades” que a mídia teima em ignorar ao mesmo tempo em que lhe estende a aplicação do termo “artesanal”.
A turma da glamourização-de-tudo resolve esse dilema introduzindo o conceito “gourmet” no próprio mundo da indústria. É uma coisa bem ousada essa de supor que a gastronomia possa levantar de uma esteira na linha de produção. Mas parece uma coisa democrática essa produção em série, mesmo que destrua uma das condições do luxo moderno, que é a exclusividade. Na outra ponta, e até porque se exauriu o caráter novidadeiro das técnicas modernas, a pesquisa dos chefs corre desesperadamente em direção aos ingredientes “exclusivos”, e a crítica gastronômica tem dificuldade de superar o deslumbramento que a própria “nova natureza” traz à mesa, o seu caráter “sustentável”, etc. O que é um bom bacupari, realçado à mesa em suas qualidades? Não é fácil responder...
Seja como for, e tentando diferenciar os discursos que se apresentam como “crítica gastronômica”, embora possam se alinhar com a polarização acima descrita, convêm fazer um esforço de tipificação e simplificação, indicando estilos diversos de tratamento:
Crítica bulímica - é aquela que confunde criação, inovação, com novidade. Ela corre atrás do novidadeiro, diz se gosta ou não gosta, com fundamentação apenas subjetiva, e o vomita para abrir espaço para uma nova....novidade! Ela nada ensina além da provisoriedade de tudo.
Crítica tradicionalista - a que confronta uma produção culinária com um certo ideal, supostamente consagrado pela tradição. Vê “degeneração” em tudo o que se move, ainda que para “melhor”. Exalta bobamente qualquer coisa que remeta à “brasilidade”, por exemplo. Ela expressa a chamada “crise de identidade”, ou como a entende... Move-a a idéia de que se comia melhor no passado e, portanto, comeremos sempre pior. É pessimista por natureza.
Crítica categorial - lembra aquele poema irônico de Drummond sobre o confronto entre os poetas municipal, estadual e federal. Ela discute à exaustão se o “melhor” dry martini é o proposto por Hemingway ou Buñuel. Qual o melhor negroni? Qual a melhor carbonara? O melhor hambúrguer? É um raciocínio que se aplica a tudo, e não leva a nada esclarecedor por trabalhar o nível mais raso da crítica: a percepção do gosto/não gosto como sintoma do bom/ruim.
Crítica celebrativa - não está tanto preocupada com o objeto em sí da crítica gastronômica - a preparação culinária - mas com o seu trajeto social: o que entrou na moda, as “tendências”, os prêmios e reconhecimentos, enfim, a aceitação de um produto pela sociedade, ainda que promovida pela poderosa indústria do marketing. Tudo isso parece-lhe dizer da qualidade do que se come. Confunde a qualidade comunicacional com aquela gustativa. E é aqui que mora o perigo do jabá...
Crítica substancial - é aquela capaz de reconhecer a extensão e complexidade do seu objeto - a preparação culinária, claro - antes de tecer juízos pontuais. Ela enxerga o produto final imerso no longo processo ou cadeia produtiva, que vai da origem das matérias-primas até a concepção do chef e sua execução. Sua qualidade maior está na eventual capacidade de isolar, e expor, a singularidade do trabalho criativo, mesmo quando não goste do resultado final, sem que seu juízo pessoal destrua a percepção do que o chef procurou comunicar.
Eu prefiro este último dos cinco estilos de crítica, embora seja pequeno o número de analistas que a praticam. E está claro que eles são minoritários porque, afinal, parecem não servir àquilo que o main stream espera do crítico. Paciência. Eles vieram para confundir, como diria Chacrinha, o velho guerreiro.
Será muito bom se em 2014 pudermos avançar na compreensão dos estilos de crítica (através dos quais absorvemos boa parte da própria culinária) e identificar seus impactos sobre a formação do público da gastronomia, pois estou convencido de que quanto mais discussão consciente e menos oba-oba melhor comeremos! Chega de lixo de qualquer tipo, não é?
3 comentários:
Bela levantada de lebre meu caro amigo, espero que haja humildade nos críticos para entenderem e aceitarem seu texto tão oportuno neste inicio de 2014.
Gastronomicalement,
Dória,
obrigado pela referência.
Sigamos e encontremos sentidos.
Abraços!
As críticas gastronômicas de fato são muito importantes, porém não me deixo levar somente por isso, acho importante você também poder ter a sua impressão.
Porém nunca me decepcionei com os críticos!
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