15/01/2014

Roberta Sudbrack rides again!

Finalmente acaba de sair o novo livro da Roberta Sudbrack. Leitura obrigatória para quantos se ocupem da cozinha brasileira sob qualquer ângulo. Um livro de maturidade, onde Roberta expõe (e exemplifica) muito de sua filosofia. 

Cada vez mais determinada, Roberta está reformando seu restaurante para, segundo me disse, “tirar tecnologia”. Enfim, uma cozinha mais corpo-a-corpo com os ingredientes vai ganhando contornos fortes e esse livro, publicado pela editora Tapioca, explica porque e como.



Tive o privilégio de escrever umas tantas páginas do livro. A seguir alguns trechos desse meu texto:
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podemos conceder aos estrangeiros que a cozinha brasileira não é mesmo fácil - e talvez por isso eles não consigam ver com clareza em meio a um jogo complexo de sombras e luzes. Somos um país muito grande, com várias “culinárias”, de sorte que dentro do próprio território nacional não nos conhecemos o suficiente. Quantos brasileiros já experimentaram tucupi? Certamente muito poucos. Quantos conhecem pequi? E todos desconfiamos de um certo artificialismo na feijoada, quando vista como “prato nacional”. Certamente é mais simbólico do que material, tantas são as “feijoadas” Brasil afora, variando o suficientemente para parecerem pratos distintos. Muito mais efetivo é o churrasco, que se come dos pampas às fronteiras amazônicas. 

Então, renovar uma cozinha assim, sem uma espinha dorsal clara, é tarefa que exige talento e trabalho; algo que se faz na paciência de cozinhas-laboratórios. Mesmo dentre aqueles que assumiram o desafio renovador em meio a uma opinião pública que celebrava a tradição, muita gente foi ficando pelo caminho por timidez, inventando “escondidinhos” nos quais substituíam a mandioca por outro tubérculo, a carne seca por linguiça e assim por diante. 

De fato, a ousadia não pode parecer, aos olhos do público, uma profanação. É preciso caminhar com cuidado, entender que a tradição representa uma solução consagrada para o uso de ingredientes que precisavam ser revisitados, reavaliados, e não substituídos como se eles mesmos fossem fonte de “caducidade”. 

Assim, durante um bom tempo os esforços em prol de uma Moderna Cozinha Brasileira estiveram presos a uma lógica mais alegórica do que inventiva. Era como se quiséssemos aprender uma língua não pela sua sintaxe, mas pelos sotaques regionais. Num outro extremo, vimos uma adesão entusiasmada à renovação técnica que soprava da Europa, especialmente da Espanha e, por esse caminho, muitos cozinheiros “descolaram” do Brasil.
Felizmente esta fase foi curta, pois a cozinha brasileira é extremamente rica pela sua diversidade e, uma vez quebrado o tabu da tradição imutável, foi engrossando o time dos cozinheiros dispostos a interrogar o que tinham à volta, iniciando um período de reflexão nunca antes visto
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A fruta do conde, o frango caipira, ora-pró-nobis, milho, chuchu, maxixe, bananas, quiabo, abóbora - tudo isso é perfeitamente legível, sem importar se é coisa autóctone ou incorporada ao longo dos séculos em nossa dieta. Desse modo, Roberta resolve o dilema “nacionalista” pelo caminho do que as pessoas realmente comem no cotidiano; não via “expedições” que hoje são feitas por chefes de cozinha para “redescobrir” ingredientes nativos nos confins da amazônia ou do cerrado brasileiro.

Some-se a isso que, na sua pesquisa, Roberta “inventa” novas velhas técnicas; improvisa vocabulário. Por exemplo, a “baixa temperatura caseira”. Há grande ironia nessa expressão que ela usa e que só os iniciados nas artes gastronômicas alcançam. A baixa temperatura certamente existe desde que o fogo é fogo. Mas, de uns anos para cá, depois que Hervé This mostrou os efeitos especiais da cocção a menos de 70ºC sobre as carnes, os restaurantes “in” resolveram alardear nos cardápios: “carne a baixa temperatura” - usando e abusando das técnicas de sous vide e do banho-maria controlado (Roner). Pouco importa qual seja essa temperatura - e pode ser variada - pois o importante é mostrar que se segue os novos cânones da moda. 

Roberta, ao introduzir o adjetivo “caseira”, subverte a mensagem carregada de epistemologia ultra-moderna para aterrizar no normal da vida. Também se cozinha a baixa temperatura em casa, no fogão a lenha; nas churrascarias que colocam o cupim e a costela de boi bem longe do fogo, submetendo-as por 12 horas ou mais. Então, onde está a novidade? A novidade está em ampliar a utilização dessa faixa de calor, não na tecnologia. A expressão robertiana é, portanto, uma crítica ao novidadeirismo, ao mesmo tempo em que se mostra alinhada com a “redescoberta” das virtudes dessa fonte tradicional de calor moderado. Assim, posiciona-se também ao lado do acolhimento que há na “vida caseira”.



Essa dialética que Roberta estabelece entre o tradicional e o moderno, entre o tecnológico e o corriqueiro - inclusive quando diz, numa época de automatismo e tecnificação, que sua mis en place começa na roça - é talvez a principal marca distintiva de sua cozinha. Ela sabe que um cozinheiro não se faz apenas por escolhas técnicas, e que é preciso alinhamento com o que de bom existe na crueza das matérias-primas. Não porque hoje também esteja em moda a “volta às raízes”, mas porque fora da integração vertical agricultura-cozinha parece não haver caminhos gastronômicos capazes de levar ao futuro de esplendor culinário que todos esperamos.

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