27/04/2014

Entre o sabor e a técnica


A gastronomia molecular, a “culinária molecular” (ou “tecnoemocional”) firmaram, por longo tempo, um terreno fértil de desenvolvimento da gastronomia.

A culinária estava mesmo muito estagnada tecnologicamente. A nouvelle cuisine pouco mexeu nisso, de sorte que a aventura que começou com os sifões e foi até o uso do nitrogênio líquido representou mesmo uma onda de inovação sem paralelo. Adrià, a grande figura desse boom, ficará para sempre na história da gastronomia, ao lado dos grandes nomes do século XX, desde Escoffier. Modernist cuisine é o livro que consolidou esse legado. Mas tudo tem um fim, e o fim de um ciclo de inovação técnica é a sua generalização. As patentes vão vencendo, as ferramentas copiadas no mundo todo. É assim em qualquer setor da indústria. Não seria diferente para a cozinha dos restaurantes.

A cozinha de vanguarda foi aquela que, em meio à tradição, abraçou as inovações tecnológicas, muitas delas já em uso pela indústria, e avançou rompendo cânones. Conquistou coisas incríveis e estacionou. Deixou, sem querer, de ser “de vanguarda”. Virou apenas cozinha contemporânea. Não é demérito, mas não é vanguarda. Foi isso que eu quis dizer ao falar dos “órfãos de Adrià” quando este fechou El Bulli.

As épocas culinárias funcionam como grandes enquadramentos para os chefs. Como uma gramática, ensinam a combinar ingredientes e processos de trabalho, hospitalidade, estética e assim por diante. A “Alta Cozinha” de Escoffier, a nouvelle cuisine e a “cozinha molecular” se sucederam nesse papel. Cada chef encontrava nessa gramática uma lógica e uma diretriz. Quando essas épocas se encerram, o que acontece? O que dirige o trabalho de cada um?

 



A inovação é um valor da cultura atual, independente dos impasses tecnológicos e, por isso, muitos persistem procurando caminhos. inovadores. Só os conformados fazem a “volta à tradição”. Não, a ela não se volta, pois ela sempre esteve ai, paralela e para quem gosta. Isso não está em discussão. A tradição, no máximo, se “revisita” quando se quer inovar. E a revisitação precisa ser vigorosa para ser convincente. Não adianta substituir a mandioca pela batata-doce no escondidinho. Talvez seja uma boa idéia, mas não uma solução.


A nova corrida aos ingredientes - diferente daquela da nouvelle cuisine - mostra o impasse em toda sua extensão. A inovação assume a forma de pesquisa botânica ou coisa semelhante, tenha ela partido de onde for. A signature cuisine só pode ser aquele percurso singular de um chef qualquer, nunca uma “tendência”, pois eles procuram se diferenciar no terreno mesmo do que buscam: os ingredientes. Formigas, tubérculos, vermes, tudo vem à mesa num show  único. Claro, há muita redundância, e ninguém aguenta mais barriga de porco cozida em baixa temperatura.

Essa encruzilhada caracteriza o momento vivido por restaurantes brasileiros e estrangeiros que perseguem propósitos vanguardistas. Deveremos observar vários nos próximos tempos para ver como cada um resolve esse dilema, pois a inovação está no pé dos craques que os dirigem. Observarei o Soeta, o Oro, o Lasai, o Èpice, o Manu, e outros que ainda nem surgiram, como o Tuju, pois acredito que estão posicionados no cruzamento por onde passa a estrada a seguir. Chefs da nova geração como Rafael Dispirite, Thomaz Troisgros, Felipe Rameh, também compõem essa brigada. Do trabalho desse conjunto dependerá a inflexão da cozinha brasileira.

Eles precisam olhar o que Alex Atala e Helena Rizzo já fizeram para poderem avançar, distanciando-se dessas soluções tão felizes. São todos cozinheiros que dominam o repertório técnico moderno de forma impecável, mas isso só não basta. Talvez seja o momento de erigir novos “discursos” (“propostas” ou coisa assim), sabendo que a cozinha brasileira renovada será o resultado de múltiplos esforços, mesmo que isolados. Em algum momento nós, captando sinais aqui e ali, consolidaremos em nossas mentes o conceito que buscamos: a cozinha brasileira moderna, renovada, vigorosa, que o tempo só fortalece.


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