30/04/2014

Mulher na cozinha sinhô não quer

Comida comete mais uma matéria chinfrim, desperdiçando um bom tema: mulheres na cozinha. Chinfrim porque baseada num falso problema: a vida dura, a jornada de trabalho nas cozinhas, seria inadequada à mulher. Nem mesmo Josimar, sempre lúcido, deixa de invocar o atavismo “nas cavernas...” ou que  “a profissão de cozinheiro sempre foi extenuante, requerendo força física”. E seguem os argumentos arrolados por Marilia Miragaia: dificil criar filhos, o cheiro de cebola que o namorado reclama, etc etc.

Escapa ao jornal a análise da proletarização, que atirou a mulher na força de trabalho, integrando um trabalhador coletivo, abstrato, sem gênero. Escapa também como a formação da cozinha industrial, no final do século XIX, erigiu os preconceitos de genero como barreira de entrada para a mulher, obstáculo que favoreceu a masculinização da cozinha. A mulher burguesa, dondoca ou coisa parecida, envolta em valores das classes dominantes, funcionou como biombo a esconder esse processo discricionário de masculinização da força de trabalho nos hotéis e restaurantes. O grande Escoffier, afirmava em 1890:

“Cozinhar é indubitavelmente uma arte superior, e um chef competente é tão artista em seu ramo de trabalho quando um pintor ou escultor. Há tantas diferenças entre bons e maus cozinheiros quantas entre uma sinfonia executada por um grande mestre instrumentista e uma melodia tocada num realejo(...). Nas tarefas domésticas é muito difícil encontrarmos um homem se igualando ou excedendo uma mulher; mas cozinhar transcende um mero afazer doméstico (...). A razão pela qual na culinária os louros são “apenas masculinos” não é difícil de encontrar (...). O que acontece é que o homem é mais rigoroso no seu trabalho, e o rigor está na raiz de tudo o que é bom, como em tudo o mais. Um homem é mais atento sobre os vários detalhes que são necessários para produzir um prato verdadeiramente perfeito (...). Uma mulher, por outro lado, irá trabalhar com o que tem à mão. Isso é muito agradável e generoso de sua parte, sem dúvida, mas eventualmente estraga a sua comida e o prato não será um sucesso. Uma das principais faltas de uma mulher é sua ausência de atenção aos menores detalhes - a quantidade exata de especiarias, o condimento mais adequado a cada prato; e essa é uma das principais razões pelas quais seus pratos parecem pálidos diante daqueles dos homens, que fazem os pratos mais adequados a cada ocasião (...). Quando as mulheres aprenderem que nenhuma insignificância é demasiadamente pequena para ser desprezada, então iremos encontrá-las à frente das cozinhas dos clubs gourmets e dos hotéis; mas até então esses serão lugares nos quais, certamente, o homem reinará absoluto”.

Desse modo, o sinhô da cozinha moderna pretendia mostrar que ela não é lugar para mulher. Aquela mesma cozinha que fora mais “feminina” do que “masculina” antes da revolução industrial.  Era uma típica reação burguesa contra o deslocamento da mulher em direção ao mercado de trabalho, abandonando os afazeres do lar. Muito antes a mulher proletária já estava no mercado, eventualmente acumulando uma dupla jornada de trabalho. Ou seja: a questão é como a modernidade industrial expulsou a mulher da cozinha profissional, e não o contrário. 

Se a reportagem entrevistasse alguns chefs da cena paulistana, inclusive moderninhos, veria ativos muitos preconceitos em relação ao trabalho feminino - versões atuais daquela velha máxima: mulher menstruada faz desandar a maionese... Não por acaso, as mulheres entrevistadas por Comida são proprietárias ou sócias dos restaurantes, isto é, participam do capital, anulando aquela que é a verdadeira força discricionária.

A matéria do Comida também transpira  preconceitos. Com isso, deixa de se perguntar o que, a meu ver, realmente importa: haveria uma sensibilidade tipicamente feminina, ou um conjunto de gestos femininos que se perderam no processo de “masculinização” da força de trabalho cozinheira?

De minha parte, procurei explorar isso de modo introdutório em artigo publicado (“Flexionando o gênero: a subsunção do feminino no discurso moderno sobre o trabalho culinário”, Cadernos Pagu (39), julho-dezembro de 2012:251-271), que integrará também meu próximo livro (Formação da culinária brasileira. Escritos sobre a cozinha inzoneira, São Paulo, Editora Três Estrelas) a aparecer no final de maio.

2 comentários:

Alexandra disse...

Oi Doria, acho que a resposta à pergunta "haveria uma sensibilidade tipicamente feminina, ou um conjunto de gestos femininos que se perderam no processo de “masculinização” da força de trabalho cozinheira?" é simples. Não há uma "sensibilidade tipicamente feminina". Cada pessoa - homem ou mulher - tem um estilo (nem sempre), um jeito de trabalhar e uma sensibilidade. Querer generalizar é cair no estereótipo. Eu, por exemplo, sou zero "feminina" quando cozinho, e nem por isso menos mulher. bjo,A.

e-BocaLivre disse...

Cara Alexandra, evidentemente não se trata de uma "sensibilidade" individual, mas de um domínio da cultura tradicionalmente ocupado pelas mulheres que, na história recente, foram excluídas do desenvolvimento da culinária industrial. Não há generalização alguma, mas tentativa de tipificaçao. "Genero" não é o mesmo que "sexo". Para maiores detalhes e mais argumentos, o texto onde desenvolvi isso num enfoque acadêmico encontra-se em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332012000200009&lng=pt&nrm=iso . Ele sairá também reproduzido em meu próximo livro, a aparecer no final do mes. Abraços

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