03/07/2014

(Re)centração gastronômica

Sigo o trabalho de Talitha Barros há muito. Desde o Sinhá, depois no Mangiare, também nas breves passagens pelo Bravin e pelo Brasil a Gosto e, agora, em sua própria casa, o Conceição Discos.

Cozinheira é uma categoria obscurecida pelo marketing de chefs, chefinhos e chefetes num esforço para provar que são mais do que isso, mas esse onda não esconde o fato de que Talitha é, de verdade, uma das melhores cozinheiras da cidade: aquele tipo de pessoa que, diante do fogão, sabe o que tem que ser feito sem se preocupar com outra coisa. Além disso, se preocupa com outras coisas no Conceição: ela cozinha, serve, cobra a conta. Quem sabe faz, não manda fazer.

Talitha nunca se deu muito bem com patrões, é verdade, mas essa sua insubmissão talvez seja a chave de acesso às suas virtudes. Ela não faz “cozinha dos outros” mas, sim, o que entende ser a tradição, o popular consagrado ou o simplesmente bom - e o faz com mãos de maestrina, introduzindo melhorias aqui e ali. Não duvide você que ela fará a melhor coxinha, a melhor empadinha, o melhor pão de queijo, o melhor frango na grelha, o melhor carbonara e assim por diante. Talitha sempre teve gente para ecoar o seu melhor, de um simples pão de queijo a um carbonara ortodoxo. E como o melhor queremos levar para casa, Conceição Discos assume a forma de rotisseria.

Outro aspecto notável é que aposta na retomada do centro. Pertinho do pioneiro Così, ela dá mais um passo (mais um quarteirão) em direção ao marco zero de São Paulo. Isso é importante porque o gosto anda muito concentrado na cidade. Nos ditos “jardins”, esse lugar onde as pessoas esperam um eterno venha-a-nós da gastronomia, abanando-se com seus cartões de crédito. Gente que acha extraordinário comer farinha ou pimenta; corriqueiro qualquer-coisa com azeite trufado.

O passo que Talitha dá é uma aposta e tanto. O centro foi abandonado à especulação imobiliária que preferiu abrir fronteiras mais distantes antes de requalificar o espaço mais tradicional da cidade, mantido como reserva de valor. A cracolândia é a outra calçada da Berrini, esse império do ar condicionado, do vidro fumê, da falta de personalidade urbana.  Que o sujeito que gosta de comer bem imbique seu carro para o outro lado da cidade é um grande acontecimento.

Descentralização = (re)centração. Talitha aposta não onde a grana passeia pela rua, mas na direção para onde, necessariamente, um dia a cidade moderna crescerá. Antecipa. E isso já é visível pela quantidade de prédios novos que surgem nas imediações.

Mas não espere do Conceição um grande decór. É uma coisa simples, talvez um pouco fria, mas correta o suficiente para que possa ofertar a sua comida com conforto. Talitha fará pratos variados para o almoço, como rim e outros miúdos. E talvez esteja horizontalizando uma culinária renovada, num feitio que já teve seus dias de glória e, agora, volta a pipocar aqui e ali. Nada de novo, mas tudo novamente, num lugar que resistiu a várias ondas de transformação urbana. Uma aposta que o leitor deve fazer.

6 comentários:

Breno Raigorodsky disse...

Auspiciosa notícia para a baixa gastronomia, feita para o baixo clero guloso de posses em baixa, mesmo que não na Baixada do Glicério, outra borda do centro que merecia recentração

e-BocaLivre disse...

Breno, não há nada de baixa gastronomia ali. Aliás, esse termo me parece uma bobagem sem tamanho.

Breno Raigorodsky disse...

Baixa gastronomia é tão provocativo, por oposição à eliminada e dita alta gastronomia - reino dos chefe e chefetes que você bem comentou acima - quanto o slowfood, que se contrapõe ao fast food. Baixa gastronomia, um mundo da cozinha feita por cozinheiros, em verdade chefes - muitas vezes donos - de botequins que sabem como fazer um bife a milaneza parecer saído da corte dos Sforza, em Vigevano, a 40km de Milão.

Breno Raigorodsky disse...

Aquela região já foi dominada por palácios gastronômicos como o Kakuk, o Star City etc.

e-BocaLivre disse...

A luta por palavras tem grande importância ideológica. A renúncia ao termo "gastronomia" - que é simplesmente o discurso sobre o bem comer, independentemente do seu preço (um pastel de feira pode ser gastronômico) - é entregar o ouro. "Baixa gastronomia", "culinária ogra", são expressões capitulacionistas. De modo algum utilizarei qualquer expressão que denote um corte de classe na gastronomia, como se existisse o bom dos pobres, o bom dos ricos. Ou a gastronomia aspira a universalidade ou é nada.
A menção ao Star City é oportuna. Ele continua lá, só que o "chic" mudou de endereço e ele, reconhecido como bom restaurante no passado, ficou entregue à deterioração que faz parte da especulação imobiliária. Já publiquei algum post sobre ele aqui.

Breno Raigorodsky disse...

Concordo. A gastronomia não deveria nem ser alta nem ser baixa, que venha na altura certa. A propósito, escrevi "...elitizada alta gastronomia" e o computador - que tudo sabe, inclusive o que quero dizer - sem pedir licença me corrigiu para "eliminada alta gastronomia", que obviamente ficou sem qualquer sentido.

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