10/08/2014

A “GRANDE MESA” EM MÃOS DE FALSÁRIOS & FASCISTAS

Sucessão de escândalos, na França e Estados Unidos, abala mundialmente a credibilidade da gastronomia


Há algo de podre no reino da gastronomia. Enquanto os foodies correm atrás de pequenas novidades, grandes negócios e grandes reputações vêem abaixo. Nos últimos dias, um grande personagem dos leilões milionários de vinhos raros acabou preso, e o inabalável Le Monde resolveu cortar na própria carne, admitindo que o colunista de gastronomia responsável pelo sucesso do jornal nessa área por décadas, era, na verdade, um colaborador dos nazistas, escondido sob um pseudônimo pomposo.

Pouca gente já ouviu falar em Rudy Kurniawan. Claro, não é coisa para pobre. Mas quem já se relacionou com ele deseja, na certa, esgana-lo! Mas, calma! O homem está preso.

Esse comerciante de vinhos de 37 anos, movimentava anualmente milhões de dólares  vendendo “grandes vinhos” em leilões e, agora, pegou 10 anos de cadeia. Ele foi sentenciado terça-feira, dia 5, pela justiça do distrito de Manhattan, por explorar um grupo de elite de apreciadores de grandes vinhos e, ainda, condenado a devolver US$ 28 milhões às suas vítimas. No tribunal, Kurniawan reconheceu sua responsabilidade e pediu desculpas.

Kurniawan, nascido em Jakarta, tido em 2007 como o “dono da maior adega do mundo”, era, na verdade, um refinado falsário. Como ele é um imigrante ilegal, será deportado dos EUA para a Indonésia após cumprir sua pena.

Quando, em 2012, Kurniawan foi preso em sua casa pelo FBI, após denúncias de suas vítimas, foram encontrados indícios claros de falsificação. Vinhos baratos do Napa Valey, com os quais ele fazia os seus blends, eram colocados em garrafas com rolhas, selos e rótulos de grandes vinhos de produtores e safras de prestígio, produzidas por ele mesmo a partir do escaneamento de rótulos de velhas garrafas. Os promotores federais o acusaram de transformar sua casa em uma fábrica de vinhos falsos.

Mas para se chegar a um leilão de vinho não basta uma falsificação grosseira. É preciso ter lábia e ser convincente e ele, em 2006 vendeu, por US$ 111 mil a preços de 2014, seis garrafas de Domaine Georges Roumier Bonnes Mares, ano 1923. Foi um erro grosseiro, pois  o Domaine Georges Roumier não produzir vinho antes de 1924, e as garrafas de Clos Saint-Denis, safras de 1940 a 1950, também comercializadas por ele, não existiam com essa denominação antes dos anos 1980, de acordo com o promotor Jason Hernandez.

Há quem o considerasse um gênio, um “cientista maluco”, mas há também quem o considerava um mero enganador, como Michael Egan, especialista em vinhos que, ao depor no tribunal, disse que suas seis garrafas de suposto Montrachet 1966  “pareciam fora de seu lugar no departamento de urologia” pelo seu líquido turvo, ocre e doentio.

Mas, afinal, por que tanta gente se deixou enganar por ele? É difícil não pensar no papel dos novos ricos que, cada vez em maior número, acorrem a esses leilões inventados logo depois da IIª Guerra, quando as estratégias de marketing dos grandes chateaux passaram a vender vinhos como se fossem obras de arte. E há vinícolas, como a espanhola Tondonia que produzem vinhos quase que exclusivamente para serem vendidos envelhecidos nos leilões norte-americanos.

E deve ter muita gente deprimida por ai, pois muitos brasileiros também compraram vinhos nesse tipo de leilão privado. Será que são vinhos confiáveis? E quando se é novo rico, e nunca antes se tomou um Chateau Mouton.Rothschild, como se iria saber se é falso ou verdadeiro, se a única forma seria compara-lo com experiências anteriores confiáveis?

Mais do que nunca parece valer a frase do italiano Luigi Veronelli, filosofo, socialista, que depois da guerra resolveu se dedicar à crítica de vinhos: “Somente um idiota pode achar que um vinho de mil dólares é dez vezes melhor do que um vinho de cem dólares”.

Ao escândalo Kurniawan, que encontrou seu epílogo no último dia 5, com sua condenação,  soma-se outro, que o jornal Le Monde resolveu remexer na sua edição de 31 de julho.

O jornal corta na própria carne, pois um artigo da jornalista Raphaëlle Bacqué recorda que, no enterro do colunista de gastronomia do jornal, em 1998, morto aos 87 anos, não havia mais que uma dezena de velhinhos, sendo que o veículo, que se beneficiou por décadas do seu prestígio e multidão de leitores, não mandou qualquer representação e nem sequer uma coroa de flores. Por que, se pergunta Raphaëlle?

A história é simples, mas as razões do Le Monde, obscuras. Sob o pseudonimo de La Reynière - evocação do famoso Alexandre Balthazar Laurent Grimod de La Reynière, gastronomo e escritor frances do período napoleônico - escondia-se Robert Courtine.

Courtine, ou La Raynière, foi um notório anti-semita e “colaboracionista”, perfilado com os nazistas na ocupação da França, membro da extrema-direita que escrevia no jornal La France au travail, tendo publicado um livro de doutrina anti-semita (Les Juifs en France, 1941). Com a chegada dos aliados, Courtine se refugiou em Vichy, onde se estabeleceu o governo proto-nazista, até a cidade ser retomada em 1945. Courtine foi preso e condenado a 10 anos de trabalhos forçados, tendo a pena comutada  em 1948. Mas o que o Le Monde expõe agora é um segundo julgamento de Courtine e do próprio jornal à época.

A partir de 1952, Courtine aparece como colaborador eventual do Le Monde e, depois, assinando sob o pseudônimo de La Reynière a famosa coluna de gastronomia do jornal, o que deu grande prestígio à publicação e ao seu autor que, ao longo de 40 anos, publicou mais de 20 livros sobre o tema.

O que importa agora é que o jornal ajudou a esconder a identidade desse colaboracionista, quando a opinião pública francesa e mundial execrava esse tipo de gente. E por que fez isso? Aquele que o contratou, Hubert Beuve-Mery, achava que ele já havia pago “a sua dívida” mas, na própria redação do jornal, essa dupla identidade de Courtine só veio a ser conhecida muitos anos depois, em 1993.

Pois foi à época do julgamento do colaboracionista Paul Claude Marie Touvier, conhecido como Claus Barbie, que alguém do conselho de redação do Le Monde, o crítico literário Bertrand Poirot-Delpech, argumentou que o jornal não possuia condições para dar lição de moral a quem fosse, visto que abrigava em seus quadros um outro colaboracionista o que, disse, “limita nossa liberdade de expressão”.

Foi quando o Le Monde decidiu se livrar de La Raynière, tardiamente aposentado segundo os editores atuais do jornal. Portanto, quando morreu, cinco anos depois, ele era considerado a persona non grata à qual não se devia mesmo prestar homenagens ou mandar flores, conforme mostrou a jornalista Raphaëlle Bacqué.

Até hoje a França tem problemas de convivência com os traidores. Afinal, tanta gente tem parentes que morreram por causa deles, denunciados como judeus ou comunistas. O curioso é que o liberal Le Monde tenha servido de esconderijo para Robert Courtine durante tantas décadas, e a gastronomia tenha fornecido a legitimidade do disfarce que alguém, que foi tão pusilânime, não encontraria à luz do dia. 


Haja glamour!

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