19/09/2014

A servidão que a gastronomia exige

A paixão é uma servidão. A servidão do cozinheiro à gastronomia pode, legitimamente, ser chamada de paixão. Mas todos os que se dizem “apaixonados” pela gastronomia realmente o são?

A paixão pela cozinha não leva necessariamente ao sucesso. Na trajetória de muitos cozinheiros há infindáveis fracassos. Pierre Gagnaire ostenta, no seu curriculo, duas falências. Talvez porque tenha seguido muito à risca o impulso da sua paixão. Outros, desistem logo, entregam os pontos, se tornam meramente cozinheiros “comerciais” e sem paixão. Ao menos é como são considerados quando se curvam demasiadamente ao mercado. E sabemos que a paixão e o altruísmo estão ligados, tanto quanto o mercado e o egoísmo.


Mas a paixão - como dedicação incondicional a esse sentimento de que a gastronomia está acima de tudo - é quase um requisito absoluto. Na comida, na moda, literatura, pintura, fotografia, e quase tudo que consideramos um esforço criativo – se o criador não se sobressai, nem precisa entrar na corrida.

Arthur Lubow, um excelente jornalista, num artigo que escreveu há mais de 10 anos para o The New York Times, comparando a “nueva nouvelle cuisine” dos espanhóis com a cozinha contemporânea francesa, aponta a superioridade da escola espanhola como fruto justamente da paixão culinária: enquanto os franceses se burocratizavam, se enredando em questões trabalhistas (jornada de trabalho), altos preços etc, os espanhóis, um bando de jovens alucinados, ao contrário, dizia Lubow, não conheciam limites de entrega ao ofício. E deu no que deu.

Qual a dedicação dos nossos novos cozinheiros à “nova cozinha brasileira”? Ela tem quanto de paixão e quanto de olho no mercado? Olhando isoladamente alguns chefes, é possível notar o impulso nas duas direções. Isso se equilibra como? E, como “geração”, qual a resultante? Coisa para se pensar.



4 comentários:

Unknown disse...

A servidão pela paixão de cozinhar é o que nos faz voar, é a entrega voluntária que nos traz contentamento e realização. A servidão que nos é imposta pelo "mercado", pela burocracia e pelos meandros fiscais e trabalhistas é o que nos oprime e faz sucumbir grande parte desses apaixonados.
Felizmente temos chefs e cozinheiros apaixonados o suficiente desbravando a "nova cozinha brasileira".
Mas o maior desafio deles talvez seja definir e dar a cara a essa cozinha brasileira.
Como já apontado em suas análises, o mais complicado é traduzir essa nossa indefinida, intrincada e multicultural identidade brasileira, também pluralista e regionalista.
Os franceses, os espanhóis, os japoneses, os peruanos, cada um consegue identificar uma paleta de ingredientes e sabores próprios, entranhados no cotidiano e na história e que os define.
A paixão de uma nova geração pode revolucionar o tradicional e fazer novas traduções e expressões dessa identidade cultural e gastronômica, enaltecendo-a por final.
Cabe a nós reconhecer os genuinamente apaixonados, apoiá-los e fazer parte dessa revolução.
E reconhecer a paixão não só de um grande chef, mas enxergá-la também nas manifestações mais humildes de uma autêntica culinária brasileira e nos produtores, artesãos e fornecedores que desafiam bravamente o "mercado" - artistas apaixonados que criam a paleta básica para que todos os demais artistas possam trabalhar.
Começar a pensar, como você sempre nos convida, é o que todos devemos fazer.

Breno Raigorodsky disse...

Coisa para se pensar. Gostei. Ocorre que o negócio da comida, após anos de experimento enquanto investimento, que remete à turma que começou a investir naquele Bora-Bora e um outro na Henique Schauman, que impulsionou tantos outros grupos de investidores, como o do Democrata, Astor etc. que se reuniu ao do Carcamano/Primo Basílico que deu em Bras... Enfim, com a faca de desossar nos dentes, nego propõe comida como negócio para os que têm a paixão, que vão até o altar sabendo que não podem sair muito da linha, arriscar além dos limites financeiros dados.

Quentin Geenen de Saint Maur disse...

Cher Carlos,

Me diga, os dois (paixão e mercado) não podem andar juntos?
Gastronomicalement,
Quentin

e-BocaLivre disse...

Meu caro, acho que há a paixão pelo mercado, mas esse é um assunto diferente não?
Abraços

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