21/08/2015

A ditadura do crocante, a gosma e o visgo

Quando menino, no interior, uma das atividades, dessas que depois só servem para a rememoração passadista, era capturar passarinhos com visgo de jaqueira. Havia um garoto mestre em preparar o visgo a partir da seiva da jaqueira e, depois, em espalha-lo nos galhos de árvores onde se supunha que os passarinhos pousariam, ficando presos. Um estratagema inteligente para se encher gaiolas de sanhaços, canários da terra, sabiás e raros pintassilgos.

O visgo, gosma grudenta, me sugeria que evitasse o contato com ele a todo custo. Essa a primeira memória consciente sobre a gosma e a evitação correspondente. Hoje pensamos texturas em relação à alimentação, não mais em relação aos passarinhos. E vivemos a época dos crocantes, distantes do gosmento e do grudento.

Nada mais seguro, desejado, do que a pele pururuca do leitão.  Ou o biscoito  ou o chocolate que fazem barulho ao mordermos. E o oposto ao crocante é a gosma. Imagine um “eu mastigante” e logo entenderá o triunfo desse “eu” sobre a matéria resistente do crocante. Do mesmo modo, a carne rija desafia o mastigar na sua anticrocância, para um corpo-a-corpo que parece sem fim. O crocante encerra em si a rapidez que os tempos modernos exigem.

Submeter a comida à mastigação é transformar as coisas do mundo num “eu” nutritivo e gostoso. Sopa é para crianças e velhos, desdentados; desliza para dentro de quem não pode se apropriar pelos dentes. O crocante é expressão do vigor do comedor. A gosma parece ser, ao contrário, a resistência amorfa da coisa imastigável. No contato com ela sucumbimos. O visgo a mesma coisa, só que grudenta. Não é à toa que se diz de uma comida mal feita que é “um grude”; comer um grude é o aviltamento da refeição.

De nada valem os dentes cravados no gosmento, gomoso ou grudento. A coisa cede e se conforma ao corpo do sujeito na forma transitória que a mastigada imprime. A coisa amorfa resiste a sucessivas mastigadas, prenunciando um triunfo sem glória sobre o propósito do comedor. Talvez ai esteja o fundamento da aversão que muitos tem à ostra ou ao uni: não se trata do sabor, mas da textura.

A antropóloga Mary Douglas chama a atenção para uma passagem de Sartre, em O ser e o nada (1943) sobre a experiência primária do contato com o gosmento, como o mel, algo entre o sólido e o líquido, instável, fluido, é “uma armadilha que, como uma sanguessuga, ataca a fronteira entre mim e ele”: ou seja, “continua um sólido, mas tocar a viscosidade é correr o risco que se diluir nela. A viscosidade é aderente, tal como um cachorro ou uma amante por demais possessivos”. Guardadas as proporções, nos sentimos como as formigas atropeladas pelo escorrer da seiva de uma árvore, às vezes imobilizada, mineralizada para todo o sempre.


A experiência sensorial ambígua do gomoso remete ao território onde a forma articulada se dissolve e não pode mais fazer parte do prazer de comer. O insubmisso à mastigada prenuncia a desordem. E se não possui “gosto”, a experiência é ainda mais radical. As senhorinhas que servem o tatacá no Ver-o-peso vão logo perguntando: "com goma ou sem"?

O mingau, a gelatina, são categorias próximas ao gomoso mas que não se confundem com ela, pois introduzem uma tensão palatável que afasta o sujeito da sucumbência. No mingau há claramente um sólido que resiste, diluído na água; na gelatina, uma água delicadamente estruturada que não resiste, mas está lá a reconhece nossos dentes como poder superior.

Muitas são os “sistemas dispersos” que podem ser comestíveis (líquidos associados a gases; sólidos associados a gases; gases retidos por líquidos, como nas espumas; líquidos dissolvidos em líquidos, como as emulsões; sólidos em líquidos; gás em sólidos; sólido em sólido; cristais líquidos). A fixação cultural na crocância limita as possibilidades do prazer ao comer, aprisionando-o na animalidade dos dentes em ação.

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