18/08/2015

Por que os donos de restaurantes deveriam fazer oficinas literárias?

Os italianos sempre me pareceram mestres na prestidigitação culinária. Se você está em Milão, por exemplo, e pede uma explicação sobre a salada do dia, invariavelmente ouvirá não a descrição do que a compõe, mas que se trata de uma “insalatina morbida, leggera, profumata...” com uma inflexão verbal que simula a revelação do óbvio.

O primeiro contato culinário com um restaurante se dá através do cardápio. São várias as suas formas e apresentações, mas o que está ali listado é a proposta de um contrato: você escolhe algo e é o que será servido.

Mas nem sempre o que está escrito corresponde à proposta clara de um contrato que regerá sua relação com a cozinha. Vou dar um exemplo que me chamou a atenção: a proposta de uma entrada que era um “carpaccio crocante”. Em seguida, uma salada caprese com “mozzarella crocante”.

Certo, as texturas crocantes (ou “crispy”, segundo o gosto do dono) estão na moda. Mas confesso que jamais imaginei o inusitado de um carpaccio assim. Nem uma mozzarella. E o garçon nos socorre e logo explica: carpaccio com um cone de massa crocante (frita ou assada, não sabe ao certo) e mozzarella empanada e frita.

Nada disso me atraiu. Para mim os conceitos de carpaccio e mozzarella não passam por crocâncias (mas fui levado a imaginar o carpaccio como uma espécie de mandiopã ou bacon frito). São coisas tão cristalinas na forma que não admitem se ajoelhar diante dos modismos, perdendo a clareza. Há algum tempo tínhamos o caso da “baixa temperatura” que Roberta Sudbrack ironizou “inventado” a “baixa temperatura caseira” e antitecnológica.

Os cardápios navegam num universo linguístico que seus autores supõem atraente porque sintonizado com o querer atual na medida em que incorporam palavras correntes de um léxico publicitário, gourmet, foodie, ou seja lá o terreno onde essas palavras se ancoram. É muito frequente, contudo, que os pratos elaborados na cozinha descolem dos conceitos apresentados como sua representação.

Queiramos ou não, palavras “da moda” introduzem ruídos na comunicação do que é canonicamente estabelecido, como um simples carpaccio, e um carpaccio adjetivado não deixará de ser um carpaccio-com-mais-alguma-coisa.


Mas no que “um plus a mais adicional” (sic) muda a natureza do carpaccio? Por acaso reforça o desejo por carpaccio, ou minimiza o carpaccio tornando atraente uma banalidade pelos seus adjetivos?

É claro que a reflexão em torno da arte de descrever, ou narrar, tem que partir da coisa a ser comunicada, e não da linguagem como armadilha para o leitor. E para tanto é preciso ter uma linguagem culinária clara que desafie a narrativa pelo seu inusitado. Partiu-se, no caso exemplificado, do contrário: as palavras existentes, de livre curso, conformam a coisa comestível. Acrescenta-se um “crocante” qualquer para inscrever o tradicional carpaccio, ou a macia mozzarella, no léxico in e assim, supostamente, na vida ultra-moderna da cozinha.

Já disseram que comemos cultura, ou comemos símbolos. Mas a sedução do palatável exige uma materialidade que vá ao encontro do desejo do comensal e, ai, as palavras podem auxiliar ou dificultar o entendimento mas jamais substitui-lo. No meu caso, o excesso de adjetivos só tem feito decepcionar diante da crua (ou cozida) realidade dos pratos.

As técnicas em mutação, o ruído do léxico publicitário, são os grandes responsáveis pela crescente incomunicação dos cardápios nos restaurantes que querem, a qualquer custo, seguir a moda sem de fato apresentar criações originais saídas da cozinha.

Seria muito útil se os donos de restaurantes não escrevessem cardápios como estão configurados em suas cabeças, mas admitissem que a linguagem tem suas manhas, suas armadilhas, e que dominá-las não é o mesmo que fritar um bife.

Deveriam fazer oficinas literárias, em vez de inventar coisas ininteligíveis que exigem explicações acessórias quase sempre decepcionantes. Afinal, nem todo mundo nasce ou se torna poeta quando precisa se comunicar com um público maior do que a sua família.












0 comentários:

Postar um comentário