16/09/2015

Entre a pornografia culinária e o entulho gourmet I


O momento da gastronomia brasileira é de inflexão. Até onde é possível supor que o mercado orienta o movimento das formas de alimentação, temos que enquanto os restaurantes de qualidade vêem seus salões esvaziando, são as padarias e lanchonetes que aumentam as vendas. Falta grana e a que existe muda de lugar. Então os chefs, bem formados, que arriscam caminhar na direção de uma cozinha brasileira renovada, parecem falar sozinhos.

Uma cozinha brasileira renovada será sempre, por definição, uma cozinha que se faça no Brasil, reconhecidamente e legivelmente referenciada à nossa cultura. Não quer dizer uma cozinha nacionalista, chauvinista, aferrada às tradições; mas uma cozinha que, permitindo inovações, aventuras, ousadias, não deixe de nos tocar a alma eclética. Como já sugeriu Nina Horta, podemos ser tropicalistas em cozinha.

Depois que o grande guarda-chuva de El Buli se fechou, os “órfãos de Adrià” ficaram ao relento. Muitos se acovardaram. Supuseram que, ao voltar às “tradições”, recuperariam o fôlego e prestígio. Não é o que está acontecendo, pois o que mata a gastronomia é a mesmice. E a mesmice entra pela porta da tradição.

A tradição fundamentalista é aquela que foi fuçar nos cadernos de receita domésticos coisas que um dia tocaram a alma das crianças, hoje adultas e foodies (como se diz). O pudim de leite condensado, o brigadeiro, a carbonara, o hambúrguer, as inclassificáveis “comidinhas” e assim por diante.

Agora, o que quer dizer num ranking qualquer, fixado em guias, matérias de jornal ou em blogs, o “melhor pudim de leite condensado” da cidade? Quer dizer que se renunciou à gastronomia e que, por outro lado, você não estava assim tão satisfeito com a sua mãe, pois se sua mãe não consegue fazer para você “o melhor pudim de leite condensado do mundo”, desculpe, ela é uma incompetente. Sim, existem mães incompetentes, por mais que isso agrida, freudianamente, suas preferências. Mãe, por definição, faz o melhor-tudo não é?

Se isso vira um modelo de gastronomia estamos, na verdade, abandonando a criatividade e a imaginação como seu motor para voltar para casa, ainda que deambulando pelos restaurantes da cidade. A segurança da casa - onde se come cada vez menos, é preciso dizer - invadindo a rua.

Posso ver a emergência do prazer doméstico na cena pública como uma espécie de pornografia culinária. Afinal, tudo o que é privado, e é exposto em público, torna-se pornografia. Posso ver, também, pelo outro lado, que o “mundo gourmet” desmoronou, ninguém aguenta mais, e portanto é preciso remover o entulho gourmet para que se possa prosseguir à busca do encantamento ao comer.

(segue em próximo post)

1 comentários:

Unknown disse...

Mãe incompetente pq não sabe fazer o melhor pudim de leite condensado do mundo???? Não sei fazer nem o pior do mundo e posso ser considerada incompetente por vários motivos, não por este. Além disso, pq a mãe e não o pai?

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