Não é difícil admitir que uma sociedade tão esgarçada como a nossa - hoje dividida em classes, raças, gêneros, preferências políticas antagonizadas, etc - expressa isso de alguma maneira também na culinária. Afinal, ela não paira acima das contradições sociais. Os antagonismos nessa esfera, embora bem escamoteados, mesmo assim são reconhecíveis: os transgenicos e seus opositores; os que apreciam foie gras e os que, religiosamente, defendem os animais frente ao homem cruel; os adeptos da “comida viva”; o partido dos “novos” e os tradicionalistas, etc, etc, etc. É nesse meio que a gastronomia se move, procurando afirmar uma promessa de felicidade momentânea e sempre fugidia.
A pornografia culinária é a exposição pública dos prazeres privados e é, de fato, um recuo gastronômico sem precedentes. Por isso que as mães, sempre em atitude edificante, escondem a sete chaves os seus cadernos de “segredos”. Mas vem um filho impudico e apresenta aquilo no seu restaurante, como um triunfo da esperteza e generosidade. Nada disso é desejável: amor de mãe não é mercadoria.
Já o entulho gourmet é aquela coisa que parece novidade, um tour de main qualquer, mas não é. É pura cópia e imitação. O exemplo das espumas não basta? Então olhe o que faz o Noma e como os chefs, chefinhos e chefetes - “inspirados” - copiam aquilo, introduzindo, aqui ou ali, um novo elemento “identitário”. Esse tipo de “inovação” contamina até a tradição brasileira. Cansamos de ver escondidinhos-de-qualquer-coisa! O método desses chefs parece ser a construção de analogias.
A preguiça na pesquisa, a falta de imaginação e a crença de que o público é bocó movem o entulho gourmet. Num quadro assim, de desencantamento, compreende-se porque a coquetelaria, na sua simplicidade, virou moda. Afinal, o que é mais banal do que um negroni, que foodies de todas as castas, no Instagram ou no Facebook, elevam à quintessencia da sofisticação e os jornais elevam a matéria principal de seus cadernos de gastronomia? Nem mesmo a forma do gelo escapa dessa voragem que faz do bom, do belo e do agradável uma questão mais que banal (será o “gelo redondo”, aliás, o sinal visível de que se está diante de um negroni dos mais caros da cidade, celebrado como indispensável). Isso sem falar das cervejas e sorvetes ditos "artesanais" que o público e a imprensa não conseguem perceber que se trata apenas de um novo modelo de negócio das grandes indústrias que estão por trás dessas modas...
É preciso aprender com os outros, é claro, e o que Adrià ensinou de mais precioso para a gastronomia moderna foi: por trás de uma culinária criativa há sempre, e necessariamente, um laboratório. Tentativas e erro, pesquisa, ousadia, fantasia, extensão do domínio técnico, etc, etc. Só depois vem o grande teste: o que o cliente achou do resultado? Adrià nunca disse que a espuma era a grande descoberta que faltava. Caminante no hay camino, se hace el camino al andar, dizia seu conterrâneo Antonio Machado.
Por não se ter essas coisas claras, toda sorte de confusão se propaga como novidade. Veja o caso da “comida de rua”: em vez de ser pesquisada, melhor conhecida, protegendo o trabalho dos raros empreendedores populares, foi sufocada por uma legislação elitista que levou os food trucks à rua, respaldados por normas sanitárias que os tradicionais “cozinheiros de rua” não têm condições de acompanhar. A gourmetização da rua talvez seja aquilo que efetivamente nos distingue do Peru, do México, etc, evidenciando o caráter perverso do nosso desenvolvimento. A rua virou um novo cenário para a classe média que confinara seus prazeres na praça de alimentação dos shoppings. É sua libertação dos grilhões que um dia criou para si própria.
Mas inovação não é só uma questão limitada às cozinhas ou laboratórios. É um produto da comunicação também. E o que vemos nesse front? Os jornalões, em crise profunda, não podem mais sair à cata de novidades porque simplesmente tiveram que sepultar o seu caráter investigativo. Precisam se fiar nas informações que chegam espontaneamente às redações, depois “confirmadas” por telefone. Os releases de assessorias de imprensa, os blogs, o Instagram, são suas novas fontes de “inspiração”. Eles pautam para a midia específica o que transbordou das demais. E correm atrás, indiferentemente, do entulho gourmet e da pornografia culinária. É um jornalismo que corre atrás do rabo do cachorro. Um jornalismo “de rabo”. Nesse contexto, entende-se que Nina Horta, Josimar Melo, Luiz Américo Camargo, tenham se tornado paulatinamente desnecessários.
Fabio Moon é um gênio! Ele sacou o momento atual e criou um “guia” para conduzir o leitor por um mundo que este já não consegue entender, tamanha a redundância. O testemunho de alguém conhecido, que faz sucesso nas redes sociais, substitui a crítica; “o pudim de leite condensado aqui é espetacular”. 101 stars, 101 pratos, hotlist, top list. “Seria impossível de (sic) comparar uma a (sic) outra e escolher uma preferida. É como se nos pedissem para escolher nosso filho favorito”, diz no seu guia o foodie-star Moon. O que os chefs que se importam com isso não sabem é que, aos poucos, se transformaram em filhos de Fábio Moon. O que sabem é que querem se tornar o filho favorito, não serem criadores pródigos sem ser filho de ninguém que está ai... Os chefs em destaque já não são os que cozinham, mas os “masters” da midia, criando nova empatia com o público e colocando em segundo plano aquela que, outrora, criaram através dos seus pratos.
A experiência gastronômica é cara, justamente pelos custos que carrega e que não se confundem com os custos da produção material da comida pornográfica (doméstica fora de casa). Há um sentido econômico, raramente compreendido, na rejeição da solução gastronômica: em tempos de crise esse tipo de prazer pode parecer excessivo para o bolso e, pois, para a vida. Em decorrência, temos a construção de um discurso contraditório que condena ou celebra a técnica, a criatividade falsa ou verdadeira (e elas se confundem na medida em que a crítica, que deveria separar o joio do trigo, também se abestalhou), enfim, tudo o que deveria encantar e já não encontra condições econômicas e sociais para fazê-lo. Afinal, antes de tudo, quem deve pagar a experiência gastronômica é o público (e apelar para o Estado também parece um despropósito).
Me lembro de um prato extraordinário que comi, do Andoni, que apresentava uma cebola cozida com um caldo concentrado de cebola. Só cebola! Caro, mas precisei reconhecer que o que havia ali, como principal ingrediente, não era cebola, mas cérebro, reflexão. Como a nossa crítica se abestalhou, ela tende a concluir que pratos simples assim “não valem” o que se cobra. No nosso país, de tradição anti-intelectual, a inteligência vale quase nada e, no caso, restaria somente a cebola.... “Cara”, claro! Daí decorre que os chefs, para se projetarem nesse universo, precisam fazer piruetas que justifiquem estar fora da linha dos preços que o público e a imprensa julgariam “razoáveis”.
Veja o caso recente de Alex Atala, o chef indubitavelmente mais criativo, mas que usava foie gras, no código elitista dos seus clientes, para valorizar o que pretendia mostrar de "brasileiro". Já não usa mais. E usa formigas. Estas faziam parte do universo culinário paulista, antes de ser recalcado e reprimido há pouco mais de um século. Talvez por isso mesmo, Alex foi busca-las, agora, na Amazônia, como evocação mais moderna. Mas, com o tempo, isso já não basta. Para dourar a pílula, escolheu pinta-las de dourado. Hoje parecem broches de Lalique da última coleção da moda. E haverá quem ache que agora vale! Vai entender a cultura do luxo numa sociedade intelectualmente indigente... Claro, #comemoscultura, mas que cultura minha gente, que cultura!
(conclui no próximo post)
17/09/2015
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3 comentários:
Sabe quando a gente le um texto e fala sozinha: É issoooooooo! Finalmente alguémmmmmmmmmmmmm!
Sou sua fã, você sabe!
beijos
Dória, dá vontade de bater palmas, sempre!
maravilhossooooooooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1tudo que eu sempre pensei e sonhei dizer. parabens
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