O máximo que os cozinheiros criativos podem oferecer é a utopia que se materializa no prato. Como temos grupos sociais distintos, teremos vários projetos utópicos. Mas é impossível dizer a respeito de qualquer ideia sobre o futuro se alguma terá chances de se tornar força viva, influindo no desenvolvimento. Assim como em outros terrenos da cultura, há na gastronomia um conjunto de referências identitárias que confere sentido a uma convivência tensa entre os que são “diferentes”, trazendo-os para um terreno comum.
Nesse terreno da vida concreta é preciso reconhecer que há uma conexão nem sempre clara entre a crise da domesticidade alimentar (comer em casa) e a restauração de evocação doméstica que se inaugurou com os restaurantes a quilo e se expandiu por outras modalidades. A refeição como momento de acolhimento se tornou mais importante justamente quando se passou a gastar mais e mais com refeições fora de casa. Para atender a uma ampla gama de desejos, esse modelo, em São Paulo, fez-se eclético e multiétnico. A culinária de feitio gastronômico, ao contrário, fez a sua própria moda inspirando-se mais numa cultura globalizada do que local. E se existe contradição entre ambas as tendências é porque estão igualmente de olho no bolso do cliente.
Mas não podemos esquecer que a experiência gastronômica só pode ser bem sucedida como experiência da exceção. Comer “gastronomia” todo dia não faz sentido, é uma contradição. Somente as elites, que olham para fora e não possuem limitação expressiva de renda, podem confundir os dois planos sem pagar por isso com contrariedade pessoal. Conciliar as coisas depende do desenvolvimento de uma cultura culinária no país que, ainda, engatinha.
Ora, uma cultura culinária melhor se desenvolve quando se volta para a realidade social e para as possibilidades naturais do meio. Convenhamos, por outro lado, que extrair uma dimensão gastronômica de nossa biodiversidade não é fácil, pois as “coisas da terra” são normalmente rejeitadas pela elite que "cria moda". É navegar contra a corrente pois, por limitação de renda do grosso da população, essa gastronomia sequer pode contar, entre os aliados, com aqueles que consomem usualmente os produtos que vão chegando, tímidos, à mesa elitizada.
É esse estranhamento elitista que faz reconhecer relevância social no trabalho dos chefs que se dedicam à pesquisa e à inovação; seja nos levando a superar as camisas de força do gosto pessoal; seja pelo descortino de novas fontes de renda e trabalho para os produtores; seja ainda como promotores de uma cultura moderna, integrando-nos de modo destacado na modernidade globalizada. São horizontes, é claro, que podem nos escapar na cozinha mesma ou nos meios de comunicação de massa.
Se, como dissemos anteriormente, há duas culinárias nas sociedades - a das elites, de inspiração mundial globalizada, e a popular, de tradição nacional - não há duvida de que a culinária globalizada só pode ser copiada, repetida; e a vertente popular só pode ser tomada como um permanente desafio pelos chefs. E não há duvidas de sobre o que fez o sucesso da Espanha moderna e do Peru: foi os chefs tomarem a culinária popular e banal como o terreno onde erigir o novo, o surpreendente, o encantador.
Por outro lado, chama a atenção o fato de os jornais sempre destacarem, em outros terrenos da cultura - como a música, a literatura, o teatro -, o pensamento de vanguarda, que questiona as formas estabelecidas; mas quando chegam à gastronomia - esse território tão relevante quanto - trabalham a favor dos modismos, da foodização do cotidiano, enfim, do entulho gourmet, fazendo do que deveria ser o pensamento crítico um mero departamento do marketing a serviço de um estilo de vida para lá de caricato e medíocre. Em outras palavras, aqueles que deveriam liderar o desenvolvimento ideológico da sociedade, através do exercício da crítica, colocam-se a reboque do pior dela. Assim dificilmente sairemos do atoleiro em que nos encontramos.
Como diz Nina Horta, “de repente comida passou a ser o assunto do dia, a coisa mais comentada do universo, o quintal de todo mundo, a vedete da mídia, a menina dos olhos dos homens, a cúmplice das mulheres, a musa do cinema e da TV”. Ou seja, a sociedade escolheu esse tema como um entre outros territórios de elaboração da nova cultura. Ao crítico - na cozinha e fora dela - cabe se debruçar sobre ele, avançar ideias, rechaçar entulhos. E o papel da utopia é justamente fixar o horizonte de uma nova cultura que, se mobilizar as energias vivas da sociedade, poderá se tornar realidade.
É inegável que os cozinheiros inovadores, pesquisadores incansáveis, trabalham nessa direção. Como as palavras produzem poemas, os ingredientes infinitos, em suas possibilidades de combinação segundo técnicas sempre em desenvolvimento, encerram a chance de uma nova cultura despontar também aí. Tudo o mais é diversionismo.
18/09/2015
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