16/10/2015

Ah, sim! Come-se também. (Nina Horta II)


:me explico. Não é que Nina Horta não escreva “livro de comida” como afirmei; mas que a comida para ela não é o mastigável na sua crueza. Não é uma literatura foodie. É o percurso da comida, as conversas que a comida provoca, e memória do comido. Montalbán, meu guru no assunto, dizia que quem come, come duas vezes; numa delas mastiga a rememoração do que foi comido antes. Nina é essa segunda deglutição. Um Brasil que comeu e, agora, é comido como rememoração.

E ela estica isso ao limite, como na crônica “balas”, quando você se dá conta de que é possível fazer uma história da infância no Brasil através das balas. E pouca gente sabe o sabor da bala Chita, assistindo o seriado do Zorro na matinê. Lembro de que quando chegava o caminhão da Confiança na cidadezinha do interior era uma visita mais importante do que a do bispo, que parecia vir na poeira salvar nossas almas do pecado da gula já cometido com folgança.

O casamento também não escapa à rememoração deglutidora de Nina Horta. As mães davam para as noras seus “cadernos de receita” que, na prática, não funcionam (como nenhuma receita funciona). Dai as noras vão crescendo no cozinhar, abandonam os cadernos falaciosos e deixam de competir com as sogras. Ganham os filhos mimados a garfo e faca. O malfeito baseado nos cadernos é emancipador. Mas tem muito antropólogo que coleciona cadernos de receita, escreve teses enormes sobre doçaria, achando que, assim, vai penetrar no coração da tradição. Balela.

A comida tece geografias. “Belo Horizonte era para mim uma terra triste, de mulheres desesperadas e mudas enterradas no tempo, chocolates sedutores proibidos, balas boas, mas duras com pedra”. Então, se não em Minas, onde a boa comida de verdade? “No Vale do Paraíba (está) o que deveria ser a verdadeira cozinha paulista”: patos macios, lambaris, frutas no pé, chuvas de içá após as trovoadas. “Qual a explicação do amor pelo passado?” Oras, “somos nós por dentro”!

 A cozinha de Nina é testemunha das nossas patriotadas ou traições. Leia o que escreveu sobre a descoberta pessoal da coca-cola: “a bebida vinha acompanhada da ideia de felicidade, riqueza e americanos. Numa ingratidão sem fim, traímos o guaraná e aos poucos nos viciamos totalmente, com recaídas, numa bebida que achávamos ruim”. (Suspeito que foi esse tipo de traição ao nacional que, com culpa, nos fez gostar do cinema novo e seu som direto inaudível. Coca-cola e cinema, ai está um tema e tanto para estudos acadêmicos). Mas o velho hábito perdura até hoje, porque quando Nina sai a jantar com amigos pede uma “coca geladíssima, enquanto bebericam um vinho mais adequado ao que comemos” e fazem cara de verguenza ajena.

Uma das melhores crônicas do livro chama-se “restaurante”. É uma narrativa sem a descrição de uma única garfada. Nela o leitor percebe que a comida é apenas um pré-texto da escrita de Nina Horta: vasculha com o olhar os habitantes de um restaurante, dissecando suas almas que já estavam dissecadas na sua imaginação. Os clientes reais, que conversam e comem, servem para precipitar pensamentos.

Há também o presente culinário da autora e não só aquele mundo de andanças povoadas por galinheiros. Nina propõe que um dia se escreva a história dos bufês de São Paulo, da qual foi protagonista. Conta o surgimento do Ginger, vocacionado para a classe média alta (seja lá o que isso significa). Regou de canapés todas as inaugurações importantes da cidade: lojas, shoppings, todas as lojas da Oscar Freire; comemorou coleções da Huis Clos, da Maria Bonita; surfou nas indicações de Sig Bergamin para os clientes. Era o progresso suntuoso. Ginger tinha fama de criativo e “inventamos um bocado nessa época”. Velas de marzipan, convite impresso em hóstia comestível; Nova York não tinha mais o que inventar e isso se refletia nos pratos servidos pelo bufê na medida em que era demandado pelos clientes embasbacados pelo modo de comer na metrópole.

O mercado foi crescendo “e foi ficando difícil capitanear e inventar novidades para todas elas. Tivemos sempre dificuldade para conseguir auxiliares que tivessem nosso olhar, criativo mas muito despojado, enfim, que enxergasse como nós enxergávamos”. A prosa do capitalismo também desafinava, gaguejava. Mas Ginger ia mais ou menos na onda dos outros restaurantes e casas noturnas ligados à família: o América, o Radar Tantan (muito antes desse Major Facundo da noite paulistana surgir...), o Ritz, o Spot. Enfim, Nina respirou comida de verdade (ou de fantasia), além de escrever. E talvez por isso mesmo tenham mobilizado sua imaginação para a escrita, num jornal que, hoje, acha virtuoso desmaterializar a sua prosa.

Ela diz que “para sermos bons cozinheiros precisamos ler não só livros de comida, mas romances, principalmente”. E eu acrescentaria: as suas crônicas. Numa época em que a comida é pensada como nutrição ou estética evanescente e palatável - da mão para a boca e desta para o sangue, sem passar pela alma, o novo livro de Nina Horta é uma tábua de salvação. Mas os cozinheiros são gente prática, que tem aversão à leitura, como dizia Santi Santamaria. Azar o deles. Que se percam ao som do lamento de uma panela de pressão.

1 comentários:

Ana Sakamoto disse...

Que belo texto. Parabéns!

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