15/10/2015

Nina Horta e o fim dos galinheiros


Uma coisa é certa: frango ensopado não é sopa. Esse o único vinculo entre o atual O frango ensopado da minha mãe e o Não é sopa, de 1995. É verdade que não sei muito bem distinguir uma coisa da outra, exceto pela quantidade de água. E Nina Horta não colocou mais água para fazer esse livro. É outro livro, não Não é sopa reloaded. E é o acontecimento editorial do ano para muitos de nós.

Bem, acho que é hora de dizer a verdade. Chega de enrolação: essas “crônicas de comida” que agora aparecem reunidas em livro não são, de fato, sobre comida. Mesmo no capítulo sobre receitas, a crônica de abertura é uma conversa ouvida na mesa ao lado no antigo restaurante Ca´doro, onde um americano fala sobre o fungo huitlacoche para uma garota bobinha - a primeira “cantada culinária” que Nina diz ter visto. Outra crônica é sobre a história do roux; outras sobre feijões, bacalhau, arrozes, quibe cru, foie, vísceras e miúdos, logo descambando para comidas de fazenda e o menu de Mari Hirata. Não pense o leitor, portanto, que vai aprender a cozinhar com Nina Horta. Ela não escreve para ensinar o oficio da cozinha. Vai é aprender outra coisa.



Importante na crônica é a atemporalidade. Desgrudar dos fatos que empapam, secar o excesso de água que dilui o caldo do cotidiano. Por isso sobrevivem aquelas de Machado de Assis, de Drummond. E as da Nina Horta.

Crônicas são um modo de olhar a vida que escorre entre os dedos. E a comida é um centro gravitacional da vida e por isso Nina fez dela a linha que costura o patchwork cotidiano. Em torno dela a família, o trabalho, a cidade, ganham sentido. E o sentido da culinária de Nina Horta está plantado num Brasil de meados do século passado e que não existe mais. Sua mãe, por exemplo, era o “terror dos galinheiros”. E onde estão os galinheiros hoje? Hoje, “quase tudo do Brasil nos é estranho”; vivemos como “galinha cega afogada no seu próprio escuro”.

Esse galinheiro de metáforas literárias remete a um Brasil que se prometia como um país bem melhor do que aquele que se tornou. Mas não há, em Nina, qualquer saudosismo ou anti-modernidade. Ela é apenas ante pós-moderna e por isso, com vagar, deixa escorrer no seu texto cores, sabores, falas de um tempo no qual queríamos ser melhores. Talvez por isso, constata que os leitores querem saber das coisas da roça, “parece que ninguém está mais interessado em comer, só em lembrar” e “só lembramos de verdade daquilo que miramos com atenção desatenta”.

Você, caro leitor, é capaz de imaginar sozinho o que é não ter um galinheiro no quintal? O que é essa pobreza de desejar apenas um "frango orgânico"? Pois só lendo Nina irá se dar conta do que o tempo lhe subtraiu em comida e em imaginação. Não que ela tenha vivido isso intensamente: só nas férias. O mais, em São Paulo, no horizonte da Casa Santa Luzia, da feira do bairro distinto. E lendo-a, lembro daqueles magníficos versos de Drummond, dedicados a Guimarães Rosa: “havia pastos/buritis plantados no apartamento”? No de Nina floresciam goiabeira, biribá, jacatiá, jaca, romã, banana.

Ela adora discorrer sobre dois temas: galinhas e empregadas (embora nesse livro não estejam tão presentes...). Já disse a ela que ambos fazem uma ponte invisível entre a sua literatura e a de Clarice Lispector. Ela não gosta da comparação. Paciência. Também não sou crítico literário.

Tem outra coisa: embora não seja um livro sobre culinária, ele nos ensina a compreende-la. Eu mesmo só passei a olhar a cozinha com realismo ao ler essa passagem: “é preciso estudo, experiência, memória, imaginação, abertura, prazer, ritmo, astúcia e visão da comida como uma língua a se aprender e que devemos interpretar segundo nossas possibilidades e vivências”. Na mesma linha, vale ler o texto “as palavras”, onde mostra o quanto de literário é o que comemos - banqueteamos palavras, como escreveu François Revel.

Há muito o que dizer. Acho melhor voltar a O frango ensopado da minha mãe num outro dia. Mas, desde já, registro um defeito no livro: falta um índice remissivo, mas isso é muquiranice editorial.


2 comentários:

Breno Raigorodsky disse...

Minha mãe fazia uma galinha ensopada a partir de uma galinha que vivia entre outras, onde hoje é o Giggio da rua dos Pinheiros. Ela já era moderna, pedia para que a entregasse morta e depenada, ainda cheirando a queimado, estamos entendidos. E o que minha faca dobrável, dita canivete está fazendo no e-boca livre?

MARCO disse...

Delicia de postagem, Dória.
Eu gostei muito do "Não é sopa", é como vc diz, não aprendemos a cozinhar com a Nina, mas eu me lambuzei em cada página!
Não vejo a hora de ter o novo livro.

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