29/10/2016

O que é a “idolatria do ingrediente” que cansou Nina Horta?

Tem razão a querida amiga Nina Horta quando escreve: “agora, depois que passou a moda das máquinas novas, aquelas que nunca cabiam nas nossas cozinhas passamos para a idolatria do ingrediente. Li nessa semana mesmo (…) coisas desse chef americano tão orgânico e obsessivo, que colhe um tomate e sai correndo com ele com as duas mãos protegendo como se fosse um bebezinho recém-nascido. Me poupem, estamos exagerando”. Todo assunto muito malhado enche; a gente lê, e come, à busca de novidades capazes de nos alegrar.

De fato, depois do longo período da culinária de Adrià e seus seguidores, a tecnologia se estabilizou e saiu de cena, e vimos a reemergência do culto do ingrediente. Digo reemergência porque não se pode negar que, enquanto houve a vigência da nouvelle cuisine, esse mesmo culto esteve presente, não contra a tecnologia, mas contra o estilo pesadão da cozinha clássica que era no que havia se convertido a “escola Escoffier”. Era preciso revalorizar os ingredientes para capacitá-los a, transformados em leves coulis, enfrentarem os molhos pesadões, fruto de infindáveis horas de cocção que resultava numa coisa sempre marrom (apud Michel Troisgros na Netflix).



Talvez haja, na lógica da gastronomia, esse movimento pendular como se fosse uma lei da física alimentar, pois ambos - ingredientes e tecnologia - compõem as condições materiais necessárias para que possa se expressar qualquer coisa a ser chamada "alma do cozinheiro". 

Tanto ingrediente como tecnologia, ao se autonomizarem como questão, ao serem reificados, tornam-se coisas tolas. De nada valem se não estiverem conectados por dentro, num amálgama cultural. E é a cultura alimentar que precisa ser discutida, vivenciada, oxigenada, tomar corpo através dos que pretendem ser chefs de cozinha de verdade.

Mas o exagero não se constrói sem uma lógica, e o que parece acontecer no Brasil é muito singular. Por um lado, o nosso “mundo das mercadorias” alimentícias, sejam industriais ou in natura, é muito estável e envelhecido. Basta ir a um mercado municipal - instituição que o gastronomismo oportunista dos dirigentes públicos está destruindo dia a dia - para ver que as novidades, em termos de frutas, por exemplo, são todas híbridas ou estrangeiras. 

Por outro lado, para você arrumar uma caixinha de pitanga, bem mais ou menos, tem que estar disposto a pagar algo como R$ 70 o quilo ou fazer-se catador de rua. A variedade de alcachofra que temos, há décadas, comparada com as argentinas ou européias, é de péssima qualidade. E os nossos “figos de Valinhos”? Sem comentários… 

Por alguma razão, que não sei dizer qual, não há investimento em seleção e melhoria genética nessa categoria de produtos. A concorrência parece não funcionar. E mesmo as coisas mais simples parecem andar para trás: quantas das nossas variedades de abóbora sumiram, sucumbidas pelas 3 ou 4 que se encontram nos supermercados?

Outros produtos tradicionais foram duramente atacados pela “filosofia Anvisa” e, assim como não se pode fazer com liberdade queijos de leite cru, impôs-se ao Queijo do Reino, à ricota defumada siciliana, um “prazo de validade” e um tipo de embalagem que impedem esses produtos de se afinarem com o tempo. Mais coisas do gênero virão ai: por exemplo, logo será proibido manipular alimentos nos pontos de venda - o bacalhau, os embutidos, etc, virão em embalagens lacradas desde o distribuidor. Portanto, muitos caminhos de escolha vão se fechando para os cozinheiros.

A omissão pública também é tão notável como o excesso de zelo descabido. É o caso dos peixes. Por que os chefs precisam se desdobrar à busca de pescados minimamente decentes? Simplesmente porque a chamada “cadeia do peixe” é escandalosamente precária, reforçada pelo estimulo ao crescimento de uma piscicultura criminosa (em termos de saúde pública ou de danos ao meio ambiente). 

Tudo isso cria mesmo um desejo irrefreável de ir à busca do “novo”. Coisas como os aromáticos brasileiros, as frutas, as PANCs, parecem caminhos curtos para se escapar das ciladas do agribusiness. E por isso acho tão meritório quando um cozinheiro consegue fazer a sua própria horta quanto termos em casa uma floreira com temperos frescos.

Talvez o modelo ideal da gastronomia seja a produção autárquica.  Recordemos que grandes chefes - de Roger Vergé a Allain Passard - sempre estiveram fortemente conectados com a produção própria de legumes, verduras e parte das frutas utilizadas. Isso tem a vantagem, além do frescor, de fixar um repertório que sustenta o desenvolvimento gastronômico dos chefe-plantadores. Com a mesma horta, Allain Passard faz um cardápio diferente a cada ano.

É claro que, nesse caminho, há exageros. Especialmente quando querem colocar o mundo todo dentro de propostas gastronômicas.  A atual modinha dos biomas, por exemplo. Ninguém come bioma, embora tenhamos a responsabilidade de preservar todos eles. É um exemplo recente de naturalização da gastronomia, como se o responsável pela qualidade, o poder de encantamento, brotassem diretamente da natureza. 

Essas coisas acontecem graças ao pouco conhecimento especializado dos nossos cozinheiros e sua vida essencialmente urbana. Poucos conhecem um jatobá, um cambucá, uma uvaia, uma jaboticaba branca e assim por diante. Em muitos sentidos, vivem de redescobrir a roda. Compreende-se perfeitamente o sucesso do trabalho de Neide Rigo entre os jovens cozinheiros. Sua mensagem é: o que parece que “não existe” no horizonte, existe, sim, aqui perto! Mas Neide não está reforçando o ingredientismo; ao contrário, mostra o tamanho da alienação de quem cozinha e não consegue identificar tantas possibilidades à volta.

Talvez a França seja o único país que, de modo sistemático, encontrou um caminho para minimizar esses problemas através do Inventaire du Patrimoine Culinaire de la France. Cada volume publicado, dedicado a uma região e vários terroirs, inventaria os produtos naturais, os produtos artesanais e suas técnicas de fabricação, além das receitas tradicionais locais. Assim, têm-se um enorme repertório ao qual os cozinheiros podem recorrer à busca de inspiração ou variação, sem terem que sair por ai procurando qualquer matinho. 

Exatamente o que falta em conhecimento útil para a gastronomia brasileira é a visão clara da articulação entre produtos naturais, seus contextos culturais de produção (inclusive a milenar seleção artificial de alguns deles!) e de uso - e esse me parece o aspecto mais meritório da critica de Tainá Marajoara à gastronomia

Poderíamos citar como exemplo o pouco conhecimento sobre os amidos brasileiros para usos como panificação. A modinha do fermento afrancesado (dito "levain" pelos incapazes de dizer "massa-mãe"), coisa tão banal, parece mais importante para chefs, chefinhos e chefetes do que mergulhar na estrutura dos amidos. É a moda dos fermentados, tão forte no oriente e tão inexpressiva na tradição brasileira, que visivelmente está em alta nos EUA e reverbera aqui.

Por outro lado, fico pensando no patético que é ir até a Amazônia “descobrir” as mesmas espécies de cogumelos que existem aqui, no Parque Estadual Fontes do Ipiranga, ali perto de Diadema, do qual a maioria dos cozinheiros nunca ouviu falar; ou a busca longínqua das espécies de frutas que Harri Lorenzi cultiva em Nova Odessa, a 120 quilômetros da capital. E as formigas, que existem por toda parte? O marketing, sobredeterminando tudo, cansa mesmo. Give me a break!

Enfim, o nosso ingredientismo culinário é uma doença infantil do empirismo que preside as cozinhas, de costa para as várias tradições populares que permanecem não-experimentadas no meio urbano. E essa alienação torna-se claríssima quando a Amazônia parece estar mais próxima do que o vale do Ribeira...

Certa vez, andando com uma farmacêutica e botânica na costa dos coqueiros na Bahia, ela topou com uma folha que as mulheres locais usavam para aromatizar doces, como uma “canela”, e foi preciso envia-la ao Jardim Botânico para identificação (Otonia otonia). E por que não se conhecia essa canela de pobres até então? E ainda fico imaginando como deve ser risível para uma cultura milenar, como a chinesa, a busca por “novos ingredientes”...mas certamente eles não morrem de monotonia.

Talvez o cansaço a que Nina Horta se refere - e foi bom ela expressar num artigo - seja a manifestação visível da pouca profundidade do trabalho culinário que, no período anterior, o oba-oba tecnológico escondeu e, agora, se revela por inteiro no vazio deixado pelo fascínio tecnológico. Vamos torcer para que cozinheiros encontrem caminhos que possamos trilhar com prazer e encantamento.



1 comentários:

A_NICE disse...

Parabéns! Você expressa tudo o que os verdadeiros cozinheiros e amantes da velha culinária pensam, acredito eu...talvez depois que os program de TV sejam desligados, os antigos livros e caderninhos das avós sejam revistos e os fogões sejam acendidos, também espero por esta valorizAção. Volto pro campo mais feliz depois de uma passagem pela Capital dos restaurantes brasileiros, São Paulo tem muito que aprender com o que temos nas raízes...

Postar um comentário