06/04/2009

Ainda as receitas...

Recebi um longo e-mail de uma pessoa que esteve no debate na Livraria Cultura, no dia 1º de abril. Diz-se incomodada com o que ouviu dos membros da mesa, reafirma sua crença nos livros de receita e não acreditar que “estejam com os dias contados”.
Seu argumento é de que retira muitas idéias de livros de receita, especialmente das fotos, assim como aprecia a história dos pratos, que são “mais literários”. Também testemunha que muitos alunos não têm paciência para ler receitas até o fim, sem conseguir reproduzi-las, sendo que, em início de carreira, acha que eles precisam, sim, “seguir um passo a passo”. Por fim, ficou com a impressão de que ouviu coisas como “não existem receitas, rasguem as receitas”.
Algumas coisas precisam ficar claras a respeito do que se disse no debate:
1. Só as receitas modernas foram consideradas como ineficazes na transmissão do saber culinário, isto é, as receitas que são formatadas no “estilo Escoffier”
2. Essa inadequação é fruto da sua descontextualização. As receitas (ou “fórmulas”) de Escoffier foram elaboradas dentro de um processo de produção seriada, tipo “fordista”, onde pressupõem muitos outros conhecimentos, adquiridos através do treinamento dos cozinheiros nos gestos básicos que compõem o cozinhar (as técnicas da época). As “fórmulas” de Escoffier estavam adequadas a essa forma de divisão do trabalho
3. Fora do contexto, as receitas “tipo Escoffier” não são um caminho seguro para se aprender a cozinhar. Os livros de receita desse tipo, que se multiplicam ad nausean, não ensinam o domínio do processo de transformação. Tanto é que não se esgotam, abordando quase sempre as mesmas coisas.
4. A análise moderna das receitas (como feita por Hervé This e sua equipe) evidencia que elas possuem uma estrutura do seguinte tipo: (a) quantificação de ingredientes; (b) indicação de processos de trabalho adequados; (c) “dicas” sobre como proceder que não correspondem necessariamente aos processos de trabalho enunciados; (d) outras informações extra-culinárias (preceitos sanitários, nutricionais, morais, etc).
5. Foi sobre este tipo de receitas que incidiram as críticas, não sobre outros tipos possíveis (como “passo a passo”, fotografias, etc), que exigiriam outro tipo de análise
6. O que foi sugerido é que o domínio técnico sobre os processos de trabalho habilita as pessoas a fazerem qualquer receita que os utilize. Exemplos: emulsionar, cozinhar em ácido, cozinhar a baixa temperatura, assar, etc.
7. Foi dito também que as “famílias de receitas” normalmente utilizadas não refletem o conhecimento sobre os processos de trabalho. Exemplo: mousses de chocolate são apresentadas como casos do capítulo “sobremesas” e maioneses como do capítulo de “molhos”, sendo que ambos os casos se resolvem pelo domínio do processo de emulsificação.
8. Na medida em que as receitas são imprecisas no que tange aos processos físico-químicos de transformação, muitos dos gestos que inclui são desnecessários, representado desperdício de tempo e energia.
Creio que foram estes os pontos principais, acreditando que esclareçam a minha posição.

3 comentários:

Mamede disse...

Eu, infelizmente não pude acompanhar esse debate já que moro em outra cidade. Pelas explicações relatadas creio que as idéias ficaram bem claras. Aliás, conhecendo um pouco do seu trabalho já tinha imaginado que algo semelhante seria discutido. Afinal é inegável que os livros de receitas são uma fonte histórica de conhecimentos culturais representativos de nossa história e formação. Concordo que a formatação atual das receitas é descontextualizada por todos os motivos já relatados e acho essa discussão bastante válida principalmente para os profissionais da área que, muitas vezes, embalados pela idéia de que a gastronomia é somente cozinhar pecam por deixar de lado discussões necessárias dada sua característica eternamente mutável.

Anônimo disse...

Doria, veja que curioso como a imprecisão científica pode transcender a mídia impressa. Neste vídeo do Youtube, postado pela revista Gourmet, o apresentador explica como amolar uma faca. E diz que encontrou pelo menos 4 tour de mains diferentes. Qual será o mais eficiente?

Sandro (Um Litro de Letras)

Anônimo disse...

Ops, esqueci o link.
http://www.youtube.com/watch?v=CQ9sgpqPq-M&feature=channel

Sandro (Um Litro de Letras)

Postar um comentário