08/05/2009

As "técnicas francesas" o que têm de francesas?

No debate sobre técnicas francesas, havido no Senac-Sto Amaro, com a presença dos chefes Cristian Constant e Yves Camdeborde, tivemos à mesa Josimar Melo (mediador), Mara Salles, Ana Luiza Trajano, Alex Atala, Emmanuel Bassoleil e eu. Talvez muita gente para pouco tempo. Paciência. Fiz duas intervenções: uma sobre “técnicas francesas” e outra sobre terroir. Reproduzo a seguir os principais argumentos que fundamentaram a primeira intervenção.
1. A “técnica” tem sido vista de forma simplificada, confundindo-se com gestos mais elementares (tornear legumes, picar couve, não são rigorosamente “técnicas”, embora requeiram destreza). Reserve-se o termo “técnica” para uma seqüência mais longa ou complexa de gestos, unificados em torno de um processo de transformação qualquer. A cocção, por exemplo.
2. A expressão “técnicas francesas” é abusada. Reflete o passado de dominação cultural. Os franceses não inventaram a fritura nem o confit; a cocção em água é bastante generalizada pelos vários povos do mundo; o forno romano se difundiu a partir da Catalunha, depois da Idade Média, e não a partir da França.
3. O que os franceses fizeram foi, no século XIX, sistematizar as técnicas culinárias ocidentais - e isto em duas ocasiões: com Carème e com Escoffier. Na primeira delas, apoiados na diplomacia napoleônica, difundiram entre as aristocracias e plutocracias do mundo todo o “estilo francês de comer”, junto com a cultura francesa em geral. Na segunda delas, com Escoffier, o que houve foi a simplificação de procedimentos visando a sua reprodução serializada (fordismo), servindo à grande hotelaria burguesa. No conjunto tudo isso coincide com a apreciação de Walter Benjamin: Paris é a capital mundial do século XIX. De lá saem os hábitos imitados no mundo todo. Daí a origem das “técnicas francesas”.
4. O legado francês do século XIX são as sucessivas sistematizações técnicas, vocabulares e dos capítulos culinários, sendo o principal deles os molhos. Esses artefatos tinham como diretriz aprisionar o melhor, a “essência” dos alimentos, como se fossem aplicações práticas e tardias da filosofia do Iluminismo. Os molhos elaborados segundo essa “filosofia” foram, ao longo do tempo, mais de 450.
4. No século XX, com a nouvelle cuisine e o policentrismo culinário, o panorama mudou. Os molhos foram perdendo importância e, com eles, o primado técnico da França.
5. Com a “gastronomia molecular” o edifício dos molhos ruiu por completo: provou-se que os 450 eram variações de apenas 23 modelos. Os franceses haviam se tornado rebarbativos em matéria técnica.
6. Mas a “gastronomia molecular”, que é francesa na origem e desenvolvimento, mostra o extremo vigor do edifício culinário nacional. Sem ela não haveria, por exemplo, o boom dos espanhóis. Os franceses são bons em técnicas, mesmo que não tenham sido os criadores do que reivindicam como tal.

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