Estou finalizando uma introdução para a edição brasileira do livro La cuisine c'est de l'amour, de l'art, de la technique, de Hervé This e Pierre Gagnaire. Ele acabou voltando meu pensamento para a questão da crítica gastronômica, muito especialmente de restaurantes.
Afinal de contas, qual o papel de quem escreve sobre gastronomia em relação à formação do gosto? Os críticos de literatura formam o gosto por literatura, mas será que os críticos gastronômicos formam o gosto na gastronomia?
Hervé explora muito o papel de Curnonsky e opõe seu modo de pensar ao futurismo culinário de Jules Maincave. Na verdade, está em questão a reprodução da tradição, dos sabores consagrados, versus a inovação. O exemplo que ele usa com insistência é o do frango: Curnonsky é a favor do frango que parece frango eternamente, reconhecido por qualquer um. Mas há o frango refinado, como o de Bernard Loiseau. Qual é o frango que recomendaríamos para alguém?
O leitor dirá: ambos! Claro, mas o crítico que vai a um restaurante tem uma idéia clara a respeito. E comentará o trabalho do chef da sua perspectiva.
Ora, além da cultura gastronômica, o ambiente social da crítica é fundamental para definir seu formato, alcance e compromissos.
Sob este aspecto sou a favor da critica anônima. Acho que preserva o crítico da pressão do meio social em que os restaurantes estão imersos. Como era, no Brasil, a velha crítica de Apicius no Jornal do Brasil.
Josimar, publicamente, já expressou outra opinião. Ele acha mais ou menos o seguinte (espero não estar traindo seu pensamento): se o camarada cozinha mal, se o restaurante é cheio de falhas, não é por conhecê-lo e reconhecê-lo que fará um prato melhor. É um ponto de vista defensável. Há críticos bons e maus dos dois tipos.
Mas, se o crítico trabalha para um “partido gastronômico” ou estético que não é a maré dominante ele será logo classificado como impertinente, insensível, ranzinza. E as portas se fecharão para ele. O Rafael Garcia Santos é odiado por uma parte do mundo da restauração da Espanha. É muito partisan do novo. Então, nesse caso, para fazer o trabalho dele, seria melhor ser anônimo. Ele não é e paga por isso.
Há que considerar também que o mundinho da gastronomia dita “Alta” é muito pequeno. Todo mundo forma uma turma só. São prêmios distribuídos entre um círculo restrito, exercícios de degustação, aulas, encontros, colaborações com revistas, etc. Facilmente o critico é cooptado pelos interesses desse microcosmo. Perde liberdade, fala uma conveniência comercial aqui, outra ali. Torna-se “consultor” ou conselheiro dos agentes do mercado. Daí a reafirmar o senso comum é um passo.
A inovação precisa críticos cultos, anônimos, cúmplices de um projeto, não de chefs.
A critica anônima (que ao menos cumpre essa função), no Brasil, retraiu-se do jornal e se abrigou na net, se expressando através de blogs. Os jornais há décadas não renovam seu plantel de críticos. O que vemos é turn over de repórteres, que nem tem tempo de se formar como críticos.
Os blogs que mais gosto, considerando ainda as diferenças de estilo e interesses, são Alhos, passas e maçãs e Que bicho me mordeu?. O propósito deles é exclusivamente a crítica de restaurantes. Que bicho não é "anonimo" estrito, mas ainda é como se fosse. Há outros, onde surgem boas críticas, mas que tem outros propósitos também. Deve haver mais alguns exclusivamente de críticas. Acabarei conhecendo. De qualquer forma esses dois me parecem encaminhar uma renovação da abordagem crítica que acabará batendo, de novo, às portas dos jornais e revistas. É esperar para ver.
17/06/2009
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6 comentários:
é,essa coisa da neutralidade é fundamental,porque senão,adeus liberdade!quem lê as criticas percebe em que redes os criticos estão presos.
Doria aonde vc achou esse desenho de maravilhoso de jatobá?
A Paola Carossela servia o seu frango ideal nos idos do seu Julia. Um frango nada neutro, muito pelo contrário, pleno de significado parnasiano, apesar do sotaque platino reconhecível nos grãos de milho apenas cozidos. E no entanto, não poderíamos defender aquele frango como sendo o dito original pré-industrial, até porque no estado pós mortem que se encontrava não podia ele sequer desfiar sua árvore genealógica
A discussão sobre a função da crítica gastronômica é pertinente devido à divulgação e ao crescimento da gastronomia no país. Tenho refletido sobre o papel do jornalismo gastronômico que, na minha visão, insere a crítica como um serviço. Acredito que é preciso desenvolver o jornalismo especializado para que seja abrangente e retrate questões políticas, sociais e culturais, tendo a comida como centro. É o tal do fato social total. Defendo uma abordagem jornalística que alcance todos os aspectos envolvidos no ato de comer. Já estou ansiosa para ler esse livro do This. Parabéns pelo post.
Olá, Carlos,
Muito obrigada pela menção ao Que Bicho, ficamos honrados! Engraçado que a gente começou a fazer o blog por hobby, sem ideia de pra onde ele ia, e de repente o Bicho tinha mesmo mordido a gente... tanto que, hoje, quando um de nós quer comer num daqueles lugarzinhos de sempre que não rendem mais uma linha no blog, o outro (ou o Bicho?) veta. Uma doideira. Continua um hobby, mas cada dia mais a gente percebe a responsa do Bicho que criamos. Muito legal esse retorno.
Abração dos Que Bicho (que pretendem, de verdade, continuar o máximo possível no anonimato)
Anna,
A honra é poder lê-los sempre! Hobby sempre é melhor que work né? Dá mais certo.
Zelem pelo anonimato! Tem outra coisa: gosto também da linguagem irreverente, sobre a qual não falei "ainda"...
abrçs
Carlos,
puxa, só li hoje...
Obrigado, obrigadíssimo.
À semelhança do que a Anna escreveu sobre o Bicho, Alhos, Passas e Maçãs nasceu de uma brincadeira e de um gosto por comer e experimentar.
Ao ler sua indicação (que não sei se é merecida, mas aproveito!), sinto algo paradoxal: uma pitada de orgulho, outra de vergonha.
Tomara que dê certo na panela.
Obrigado de novo & abraços!
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