“Você tem que aprender a respeitar o gosto dos outros!”, me advertiu a mulher, lá no fundo do Amapá, quando resmunguei qualquer coisa contra as Hilux que atravessavam a cidade portando na cabine mais de R$ 30 mil em equipamentos de som que vomitavam, no volume mais alto possível, horríveis músicas sertanejas.
Engoli a seco a resposta na ponta da língua, para não criar mais dissabores: “vocês é que têm que aprender a respeitar o desgosto dos outros”. Acho que urbanidade é isso: respeitar o desgosto dos outros, mais do que os gostos individuais.
Esta cena me voltou agora, lendo os relatos deprimentes da vida pós-lei anti-fumo em bares e restaurantes. Uma lei que parte da idéia de que a urbanidade é impossível; que infantiliza a cidadania ao impedir que encontre por si mecanismos de convivência contraditória; que impõe a normose como parâmetro legislativo.
Sim, normose. Palavrão de intelectual, termo cunhado por Pierre Weil para denuncia a anomalia das normas democráticas ou o anormal delas. Como a proibição do fumo: “Ainda há algum tempo atrás era considerado normal as pessoas fumarem. Muito mais, era considerado ofensivo e mal educado pedir a alguém para deixar de fumar na sua presença. A medida que se reforçava a certeza de que o ato de fumar era lesivo à saúde podendo criar efizema e câncer pulmonar com conseqüências eventualmente letais, o fato de fumar em si começou a ser questionado sem contar o ato de fumar em público. O resultado foi que esta norma caiu por terra, sendo reforçado em certos países pela sanção legislativa”.
Quer dizer, a normose é “o conjunto de hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria de uma determinada população e que levam à sofrimentos, doenças ou mortes, em outras palavras, que são patogênicas ou letais, e são executados sem que os seus atores tenham consciência desta natureza patológica, isto é, são de natureza inconsciente”.
A sociedade parece estar pouco se lixando pelo espetáculo deprimente do cidadão que, num prédio de escritórios, precisa fumar atrás da porta da escada de incêndio; ou na rua, como uma alma penada. E, agora, que não pode fumar o seu único cigarro realmente prazeroso após um bom almoço ou jantar.
Claro, o Ocidente não soube lidar com o tabaco e o transformou em arma letal. Do uso ritual dos índios americanos, tornou-o uma commodity que trás em si o vício.
Marcy Norton, autora de Sacred gifts, profane pleasures. A history of tobacco and chocolate in the atlantic world mostrou como ele, deixando de ser algo que ligava os homens à divindade, se transformou em signo do mais absoluto isolamento social.
Mas uma coisa é limitar o direito dos cidadãos, outra é suprimi-los com a justificativa hipócrita de que são anti-sociais.
“É proibido fumar charuto, cachimbo ou cigarro de palha”, lia-se nos espaços públicos na época em que os heróis (De Gaulle, por exemplo) apareciam em público fumando; Casablanca era considerado o melhor filme, etc.
A figura do “fumante passivo” é uma hipocrisia. Todos somos fumantes passivos da fumaça dos ônibus e automóveis, das chaminés de restaurantes, fábricas, etc. Contra isso pouco faz a autoridade pública. Adia a supressão do enxofre na gasolina, a fiscalização da emissão de fumaça por ônibus e caminhões e assim por diante. Uma acelerada do caminhão de lixo da própria prefeitura equivale a quantas baforadas?
É covardemente mais fácil investir contra o viciado em cigarros, ainda mais com a “normose” a seu favor. Mas alguns países, que prezam as liberdades individuais numa ordem democrática, têm encontrado formas de conciliar o conflito, permitindo que os restaurantes destinem áreas distintas para fumantes e não fumantes. Soluções há, quando se procura. Sabemos disso.
No longo prazo as companhias de tabaco trabalham com um cenário onde o cigarro volta a se ritualizar, se aproximando da forma como é hoje o consumo de charutos. Ninguém mais reclama de charutos: foram confinados ao lar ou aos clubes de fumantes. Retiraram-se da esfera pública, inclusive porque são muito caros, tornando o consumo escasso.
Se o propósito fosse diminuir o consumo e o incômodo público, o cigarro poderia custar R$ 50 o maço. Mais ou menos como é em Cuba, onde custa 10% do salário mínimo. Parece mais inteligente. Mas não podemos esquecer que o Estado, desde o famoso “estanco” colonial, é sócio da indústria do tabaco. A coisa que ele menos deseja é que o consumo diminua, diminuindo a receita dos impostos.
Daí esse papel esdrúxulo de esconder os fumantes nas escadas de incêndio, na rua. Como se fosse o velho pai que não "percebia" que os filhos fumavam no banheiro, mantendo a normose da casa.
06/08/2009
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3 comentários:
Dória,
Gostaria de parabenizá-lo pelo seu Blog. Faço minha leitura diária por aqui simultaneamente ao delicioso Blog do Pedro Martinelli.
Destaco a variedade e riqueza de assuntos que trata por aqui, com muita lucidez e consistência.
Tenho feito inúmeras descobertas através de suas idéias, a elegância de sua escrita.
É realmente um prazer.
Abços,
Ana Paula Bousquet
Ana Paula,
muito obrigado! Também passei a frequentar seu blog e gosto muito da sua sensibilidade para as minudências.
Abrçs
Dória
Engraçado, no caso de um fumante casado com fumante, a reclamação é de normose. Quando se tratava da lei seca 0,1l de alcool no sangue não. Quem se deblaterava contra a infantilização social era imediatamente taxada pelo grande professor de alcólatra enrustido. Pimenta no cu dos outros é refresco, não é assim que se diz em Piracicaba?
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