26/08/2009

O novo estranho caminho de Santiago - IV


Cubas de aço ou tonéis de carvalho? “Vou apagar as luzes para não molestar as aranhas. São elas que comem os ácaros que atacam a rolha. Se acendermos as luzes elas se escondem, não trabalham. Agora, com a mania da higiene, especialmente dos americanos, acham que essas teias de aranha são impróprias, imagine! Ainda não se descobriu nada que proteja melhor as rolhas”, diz a jovem e agitada senhorita que, do alto do seu metro e meio e com irmãos igualmente jovens, responde pela estratégia da aranha da centenária bodega Tondonia. Seu dinamismo é estonteante. Baixinha espevitada, diríamos no Brasil.
Estamos há vários metros de profundidade, nas cavas subterrâneas dessa bodega fundada em 1877. Barricas velhas, fungos, umidade e aranhas. Mal se pode respirar. E a moça fala sem parar! Viña Tondonia está perto da estação de trem, lugar mais apropriado para se mandar os vinhos à França quando a praga da filoxera exterminou os vinhedos de Bordeaux e os grandes produtores franceses descobriram essa terra milenária, então não atingida pela praga, fazendo dela um entreposto francês. Mas, criou-se um estilo riojano para o vinho?

“Os vinhos no mundo têm dois grandes estilos. O mediterrâneo, que inclui todos os vinhos produzidos no Mediterrâneo e no novo mundo, nas terras interiores. Eles possuem uma característica que é a pouca maturação da casca da uva, quando o bago já está maduro. Dá vinhos corpulentos, frutados, com alto teor alcoólico, em torno de 14ºC. E os vinhos atlânticos, onde a casca da uva amadurece melhor, os vinhos ganham aromas bem mais sutis, verdadeiramente únicos, e a bebida atinge seu melhor equilíbrio em torno de 12ºC. São menos alcoólicos e mais sutis. O resto, os mediterrâneos, acabam todos se parecendo a compotas de frutas. Mas os vinhos atlânticos só se beneficiam desse clima numa estreita faixa, que abarca parte da Rioja e vai até a região de Champagne, na França”, nos explica José Peñín, o mais importante crítico enológico espanhol, uma espécie de Robert Parker nacional.
Os novos mercados, o padrão mundial, parecem exigir vinhos mais “mediterrâneos”. Modernos, corpulentos, frutados. A sutileza riojana está posta em cheque. Por isso, as bodegas da Rioja, em paralelo aos vinhos tradicionais, começam a fabricar novas linhas, de olho nas gôndolas dos Estados Unidos, infestadas de vinhos do novo mundo. Uma nova Rioja se ensaia e boa parte das bodegas já conta com a asssessoria enológica do mago Michel Roland, o grande arquiteto da modernidade engarrafada no mundo todo. “Nossos vinhos são tradicionais. Michel Roland não interfere neles”, garante o enólogo do Conselho Regulador de La Rioja. Então, por que ele atua na Rioja? “Ah! Ele é um importante elemento de marketing. Ajuda a vender nossos vinhos tradicionais”, emenda com sabedoria duvidosa.
Assim, ao lado das grandes barricas de carvalho onde os “crianza”, os “reserva” e os “gran reserva” dormitam como há 150 anos, surgem, ainda tímidas, as torres constituídas pelos enormes depósitos em aço onde o vinho “moderno”, que pouco ou nada conhecerá do carvalho, espera sua vez de ir à luta no mercado transoceânico. A arquitetura das novas bodegas, sem aranhas, com iluminação estudada e simulando catedrais, anuncia os novos tempos.

Ao longe, em El Ciego, no País Basco fronteiriço, vê-se a nova bodega da Marques de Riscal – uma das mais tradicionais produtoras de Rioja que adere com tudo à modernidade. Além da assessoria de Michel Roland, a Riscal encarregou da obra o arquiteto Frank Gehry – autor do Guggenheim de Bilbao. Folhas de tungstênio simulam o tremular de vinhedos ao vento, em dourado e rosado metálicos – como se, num vendaval, o Guggenheim houvesse sido arrancado de onde esta para espatifar ali, em El Ciego, aos pés dos vinhedos.

Não por acaso a arquitetura arrojada tornou-se o símbolo visível da Espanha atual. “O franquismo interrompeu o desenvolvimento do movimento moderno na Espanha. Esta marginalidade promoveu um certo radicalismo, justamente por ser proibido durante tanto tempo e por ter se mantido conectado com os inícios mais radicais do movimento moderno”, diz Terence Riley, o comissário-chefe de arquitetura e design do MoMA de Nova Iorque.
Dentro desta nova construção, além de um Spa, haverá também um restaurante, montado com a assessoria de Francis Paniego, o único jovem chef riojano que conquistou uma estrela no Guia Michelin. “No começo eles queriam que eu me mudasse para lá. Mas isso não é possível, pois tenho meu restaurante em Ezcaray. Só vou dar assessoria!”, esclarece Paniego. Nada de se mudar com mala e cuia para a modernidade; mergulho no tempo incerto para quem tem raízes.
Ezcaray é um pequeno vilarejo a 40 quilômetros de Logroño, incrustado no sopé de um conjunto de montanhas onde se pratica o esqui em mais de 20 quilômetros de pistas sinalizadas. Os bosques que recobrem os morros à volta são áreas de preservação e abrigam uma razoável quantidade e variedade de caças em “cotos” públicos.
Enquanto sua perua serpenteia por estradas asfaltadas em meio ao bosque e entretém a filha, a mulher e os visitantes, Paniego vai mostrando na terra as cicatrizes de outra época. São vestígios de minas de ferro e talco que já não mais operam. Paramos numa clareira para tomar “una copa”, comer um chorizo, colher uns cogumelos e umas flores brancas e amarelas com as quais pretende decorar os pratos do nosso almoço.

Francis Paniego é a personificação da transição que a Espanha busca nas suas entranhas históricas, procurando construir o diferencial eno-gastronômico capaz de alavancar o seu turismo e, ao mesmo tempo, mostrar-se dinâmica e aberta para um mundo globalizado. O pequeno hotel, de sua família há quatro gerações, situado ao lado de uma igreja barroca, já era estalagem no século XVI. Sua mãe dirige com mão de ferro tanto o hotel quanto o Restaurante Echaurren, de tradicional comida riojana. Chorizo de La Rioja, Aspargos frescos, Croquetes, Pimentos de piquillo confitados, Sopa de pescados, Grão de bico com mariscos (almejas) – pratos fumegantes que atravessam o amplo salão com mais de 120 lugares. No lado oposto à entrada do hotel está o restaurante El Portal, dirigido por Francis, o filho pródigo. São apenas 40 lugares. Francis tem consciência de que os "modernos” são assim, em menor número, na proporção de um em cada quatro turistas.

Quem durma ali, terá dificuldades em dizer qual a melhor opção gastronômica que os Paniego oferecem. Não haverá remédio senão alternar as refeições. Consciente desta ambivalência, Francis oferece no seu cardápio “dois pratos que minha mãe nos empresta”: os croquetes e uma sopa tradicional. O mais são magníficas modernidades de quem estudou na França, estagiou em El Bulli e conquistou sua própria estrela Michelin. Cigalas de Galicia com batatas à baunilha, Taco de foie gras assado com uvas ao cardamomo, Tartar de tomate com cigala e alho branco, Merluza confitada a 45 graus. O vinho que Paniego nos oferece é um vinho novo, considerado o melhor da categoria no ano de 2005.

(Segue. Conclusão da série amanhã)

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