10/12/2009

A dialética da feijoada no rabo do porco

Feijoada acaba com a gente. Por isso o dia é sábado, quando se pode jiboiar. Mas, dizem, foi inventada por escravos. O paradoxo: escravos trabalhavam de sol a sol, como criariam coisa indigesta por vontade própria? Comiam mesmo o pão que o diabo amassou; não podiam contribuir para a dieta nacional. “Contribuição” supõe liberdade; sem ela não há criação literária ou culinária.

A feijoada deriva do “feijão gordo” enriquecido ao extremo, a ponto de se tornar prato único. Ela só é compreendida dentro do seu ritual: feijão preto e pertences, a caipirinha de cachaça (moeda líquida do tráfico negreiro) e a evocação histórica da nacionalidade. A mini-feijoada de boteco na quarta-feira retroage, volta a ser feijão gordo.

No final do século 18 carioca, a alimentação dos escravos está lastreada no feijão preto, farinha de mandioca, laranjas e bananas; além das carnes secas ou toucinhos que os próprios negros podiam comprar com o produto da venda das suas hortaliças. A origem deve ter sido essa. Mas, um século depois, ela ainda não era um “prato completo”, segundo Câmara Cascudo que sugere que ela se difundiu como tal em hotéis e pensões.

Foram os modernistas que projetaram a feijoada como prato nacional. Eles tinham necessidade enorme de novos signos para a brasilidade. A questão estética e política era “acharmos a nossa expressão” em vários planos, e nada melhor do que o popular feijão, a evocação do cozido português, dos embutidos e pedaços de porco, além da couve.

Mário de Andrade, em “Macunaíma” (1928), desenhou uma cena imorredoura: a feijoada na casa do fazendeiro Venceslau Pietro Pietra. Uma alegoria da cozinha nacional e daqueles seres étnicos que o Brasil colocou em contato. O festim é presidido por Venceslau (peruano, italiano, Piaimã), um demônio devorador de gente ou “comedor de identidades”, conforme interpreta a crítica literária. O tema da antropofagia, da deglutição cultural, esteve presente em toda a produção modernista e a feijoada é um caso particular seu.

Este festim de Macunaíma foi magnificamente carnavalizado no filme homônimo (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. E a graça da evocação continuou com Vinicius de Moraes (“Feijoada à minha moda”), que ensinou, em versos engordurados, como fazer uma feijoada sabática.

O feijão é coisa quase universal. Mas enquanto o preto e o rajado “igualam” as classes sociais, o fradinho e o jalo diferenciam preferências de ricos e pobres. Feijão preto é dominante somente no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. O tempero relevante da feijoada é a propriedade metonímica de reter o passado de escravidão na cor do feijão, subvertendo o seu sentido. Dentro e no entorno, a feijoada congraça índios, negros e brancos, esquecendo que se comiam: uns foram dizimados, outros feitos escravos; outros, sempre colonizadores cruéis. A feijoada, como alegoria, é o substrato alimentar da irmandade mística dos contrários - a nação mestiça - desejada e vista como original do Brasil desde “Casa-grande & senzala” (1933) de Gilberto Freyre. Coisa de intelectuais, estamos entendidos.

E nada mais “cabeça” do que a “Dialética da Feijoada” (1986), de Renato Pompeu, com o prato feito metáfora das relações de classe e da dependência diante do imperialismo. Como escreveu, “consagrada pela intelectualidade influenciada pela industrialização [ela] tem de enfrentar outros pratos simbólicos e a sua afirmação como prato nacional-popular tem de ser considerada ainda um processo em andamento”.
Joãozinho Trinta, o carnavalesco, poderia reformular sua frase célebre: “quem gosta de pobreza, e da riqueza da feijoada, é intelectual”. Porque pobre celebra mesmo com churrasco de boi, a carne dos ricos, e cerveja. Assim, as classes sociais se devoram, de modo cruzado, à mesa. Da deglutição restam, incólumes, só os ossos do ofício e os do rabo do porco.

(Folha de São Paulo, Mais!, 06/12/2009)

1 comentários:

Breno Raigorodsky disse...

Legal. Quem quiser comer o cochinillo do Rubayat ou encomenda com 3 dias de antecedência ou ataca de feijoada, porque ele é servido desde que foi incluído no cardápio da casa sob o empinado nome de babypork.

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