07/12/2009

Meditações sobre a trempe do fogão de Adrià

Outro dia, no lançamento do livro da Giuliana Bastos, o Josimar me chamou a atenção para um pequeno epísódio, até jocoso, que está registrado no seu blog. Trata-se de um vídeo que mostra Ferran Adrià explicando um prato em homenagem ao Brasil, chamado Pasión: um maracujá dentro da casca, feito na brasa, servido com as sementes e molho de tucupi.

Mas Adrià não se limitou a misturar os dois ingredientes: ele “inventou” o tucupi! Sim, pois chamou de “tucupi” uma aproximação ao seu sabor que fez, ao que parece, com caldo de galinha, gengibre, erva-cidreira e outros temperos que Josimar não entendeu bem quais eram. Su pasión personal é fazer a coisa que pareça sem ser; transformar um sabor mental em coisas que o expressem independente do original que imita.

Esta história não me saiu da cabeça porque mostra bem como a cozinha de artefatos gustativos funciona.

Não se trata de uma criação ao velho estilo, misturando coisas inusitadas ou com técnicas novas. Este aspecto pode estar presente – e está, pois não costumamos comer maracujá com tucupi – mas se trata de, propositalmente, trilhar um caminho onde o simulacro é mais desejado do que a coisa em si.

Talvez este seja mesmo o princípio de toda a moderna indústria alimentar onde, por exemplo, as sínteses químicas fazem o papel de essências naturais (a vanilina no lugar da baunilha).

Acontece que aquele tucupi que Adrià conheceu pelas mãos de Paulo Martins, e que pode experimentar in loco, quando esteve em Belém com Alex Atala, simplesmente não é uma coisa in natura, mas a síntese de milênios de cultura e do trabalho atual de prepará-lo da melhor maneira possível.

Quero dizer que um ingrediente como o tucupi é um resumo de trabalho humano, das relações sociais subjacentes. É a isso que Adrià não atribui valor, embora seja exatamente o que é mais valorizado por certas correntes culinárias, ongs preservacionistas e outras entidades preocupadas em reforçar formas de trabalho ameaçadas de desaparecimento. É exatamente nesse terreno que ele e Santi Santamaría se combatem.

Pessoalmente não vejo qualquer graça nessa pesquisa de Adrià, pois me contentaria com a idéia original de associar maracujá e tucupi. Mas é claro que o artefato construído com base na ciência, na técnica e na imaginação é que faz a humanidade progredir em vários momentos e em várias direções.

No entanto, não há progresso onde essas inovações não possam responder a uma utilidade: qual o benefício humano? E qual a utilidade de se substituir um tucupi verdadeiro por um falso tucupi? Francamente não alcanço. Talvez mostrar a criatividade que vira as costas à natureza e ao trabalho primitivo, isto é, a apoteose da técnica.

Mas se pensarmos em termos de modelo para a indústria de alimentos, talvez seja o mesmo que dispensar as Dnas. Brazis. A homenagem desse prato tem o sentido de prescindir dos homenageados. Nele se substitui um trabalho (o de brasileiros que fazem tucupi) por outro (o de espanhóis que simulam tucupi).

O resultado disso é muito convencional: cria-se emprego na Europa, destrói-se no Brasil. Claro, tudo em escala muito pequena, nada que nos afete. Mas o modelo subjacente de relações internacionais de troca é odioso.

7 comentários:

Anônimo disse...

Não seria também por praticidade e questões econômicas?
É muito mais fácil "inventar" do que importar o que diminuiria o lucro!!
Abs.

Anônimo disse...

Outra coisinha: você nào consegue melhorar esta traquitana onde se faz comentários? rs
É uma verdadeira novela conseguir comentar por aqui!! rs

Unknown disse...

Carlos,

Algum dia tinha de ser o primeiro em que estaria em desacordo com as suas reflexões. Foi hoje.
Creio que o que Adrià propõe é justamente uma homenagem ao Brasil.
Não sendo ingénuo, excluo, neste caso, todos os encómios que lhe possam vir a ser tributados por mais uma “genialidade”.
Adrià, tendo assumido a impossibilidade de utilização do Tucupi - por motivos óbvios e explicados - socorreu-se da sua memória gustativa para o recriar. Julgo até, como já foi vastamente referido, que o Adrià olha para o Brasil como berço de uma infinita variedade de ingredientes, “técnicas e processos” que deviam ser conhecidos e reconhecidos pelo mundo gastronómico.
Ao fazer essa singela homenagem quer-me parecer que - não só não está a dispensar as Dnas. Brazis como, pelo contrário, está a valorizar o trabalhos por “elas” desenvolvido - está a abrir portas para que no futuro o “verdadeiro tucupi” e outros tucupis possam ser usados e recriados por esse mundo fora com todos os benefícios que daí podem advir para o Brasil. Vastas vezes o caminho da preservação de uma certa “cultura” passa pela sua difusão. Manter as coisas fechadas guardadas só para uma imensa minoria leva, isso sim, à sua perda.
Afinal, não é esse o objectivo de quem se relaciona com a gastronomia, enquanto ciência e arte, dar-se a conhecer aos outros. Ao substituir-se aos brasileiros nesta fase, pode estar a abrir caminho para que muitos mais brasileiros possam vir a ter oportunidades de se mostrar num palco maior.
O povo (mercado) não é acéfalo e saberá com certeza “separar o trigo do joio”.

Grato por me ensinar todos os dias.

Um abraço

e-BocaLivre disse...

Miguel,

acho admirável o seu otimismo.
abraços

Mari disse...

Carlos,

acompanho teu blog via twitter, e sempre encontro por aqui textos que me acrescentam algo de bom. Confesso que quando vi o título deste último, fiquei intrigada, pois sou admiradora do Adriá, mas a expressão "simulacro de tucupi" me causou arrepios! Acabo de concluir um trabalho acerca das indicações geográficas, e ao longo da pesquisa desenvolvi o temor de que nomes exóticos identificados com o Brasil sejam usados sem o menor cuidado pelo mundo afora. Foi a ameaça quase concretizada com o cupuaçu, que se pode creditar a uma empresa japonesa cuja reputação além deste fato eu desconheço. Mas do "maior chef da atualidade" eu não poderia esperar um embuste desses... Se nas mesas estreladas os comensais forem convencidos de que o tucupi - e quaisquer outros produtos genuinamente brazucas - é fruto da criatividade do chef, dificilmente nosso país se beneficiará da bossa que vem cercando a culinária brasileira.
Muito obrigada pelas palavras deste início de semana!

Mariana

e-BocaLivre disse...

Mariana,
verdadeiramente não vejo "embuste" nem tenho razões nacionalistas para ser contra. Não gosto é dessa simulação do natural com status superior ao "natural" ou construido de modo tradicional. Não vejo vantagem humana nisso.

Unknown disse...

Boas

Acho muito bom que este senhor tenha tido a coragem de criar algo porque a criação faz parte de intuição e de cooperação para algo melhor e favorece a todos. Criar não é copiar mas sim fazer inovações, fazer algo diferente que possa contribuir para uma sociedade melhor.
Devemos valorizar sempre aqueles que criam porque a criação nos pertence por direito divino.
Aqui na Europa não temos acesso às coisas do Brasil com grande fluência e porque também implica a vigilância Alfandegária.
como no Brasil que também criam coisas novas e com base na cultura Europeia para satisfazer a sociedade. Portanto todos somos iguais com os mesmos direitos de respeito e lugar neste mundo.
Parabéns a todos os criadores porque criam com o coração.
António

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