12/02/2010

Aprender a cozinhar: interrogar o ingrediente (II)

Como você pode fazer um bom nhoque se não souber qual a melhor batata? Não adianta fazer cursos, ler receitas, sem conhecer o amido íntimo da batata e os seus usos.

O mais difícil na cozinha é interrogar o ingrediente, aprender com as respostas que ele dá em meio ao seu silêncio. E saber, de cara, que um ingrediente é tudo que entra como matéria-prima num processo culinário, mesmo que haja sofrido transformações. O pão de queijo, por exemplo, tem como ingrediente o queijo Canastra, que por sua vez tem por ingrediente básico o leite cru. O leite cru não é o mesmo que o leite pasteurizado, e ai já começa a se borrar nosso entendimento.

O ingrediente é o “ponto G” da gastronomia. “G” de gastronomia.

Bocuse lembra que se você muda de moinho de farinha de trigo precisa também adaptar todas as suas receitas, senão não chega ao melhor resultado. Imagine então nós, brasileiros, que tomamos todas as farinhas como se fossem iguais, mensuráveis em xícaras. E temos ainda a prosaica farinha de mandioca!!!

Certa vez Alex Atala me disse que seus clientes não sabem distinguir entre duas farinhas de mandioca. De fato, elas são tantas que uma receita que diga “faça uma farofa de farinha de mandioca assim ou assado” não diz nada de essencial, pois toma as farinhas como iguais.

O Pedro Martinelli tem se dedicado às farinhas. A feitura da farinha, as suas várias origens, etc etc. É um mundo, cujo trabalho subjacente ele busca registrar com suas lentes de cirurgião da fotografia. Mas não só existem vários tipos de farinha de mandioca como existem centenas de variedades de mandioca, umas mais freqüentes em alguns lugares, que resultam em sabores bem distintos.

O quase infinito conjunto de mandiocas e suas farinhas constitui um vasto capítulo dos ingredientes brasileiros. Hoje me dou por satisfeito com a farofa feita de farinha d´água, que peneiro para ficar com granulação mais fina, à qual acrescento mais ou menos 1/3 de farinha de castanha de caju e refogo tudo em manteiga, temperando com sal. É o meu gosto, para acompanhar um lombo de porco ou coisa assim. Mas é possível construir farofas distintas e, para isso, é preciso experimentar a diversidade de farinhas das quais se pode partir antes de começar adjetivá-la com adições variadas.

Pedro Martinelli me deu um pacote do coquinho tucumã (Astrocaryum aculeatum). Fiz uma manteiga com ele. Ficou saborosíssima. O Pedro usa o tucumã com macarrão. Congelei a manteiga enquanto me interrogo: que diabos posso mais fazer com ela? É como andar no escuro, sem referencias, pois não há receituário nesses livros bem-comportados que ensinam a fazer vatapá e outras “tipicidades”.

Bem faz Roberta Sudbrack que fica durante um ano escarafunchando a alma do chuchu, do quiabo e assim por diante. Ela sabe onde mora a gastronomia. Se ficasse no nível raso das receitas existentes estaríamos perdidos! Mas vai além e restaura a inteireza do quiabo para a gastronomia. Se o aluno desavisado de culinária fosse pesquisar sobre o que fazer com o quiabo encontraria vasta literatura sobre como se “livrar” da sua baba.

Um simples alface. Quanta variedade há! Alface romana é a que prefiro. Alface americana quase não tem gosto, mas é a mais crocante. Preciso saber que efeito quero produzir em minha salada para escolher o alface. E assim por diante.

Um curso geral de culinária deveria começar pelo estudo o mais exaustivo possível dos ingredientes gerais: as carnes, os peixes, os legumes e verduras, as frutas. Um curso de culinária brasileira, pelo arroz, feijão, mandioca, farinhas, ovo frito (são tantos os resultados que se pode atingir), abóboras, maxixe, carne-seca e assim por diante.

Nada, nessa fase, de receitas de quibebe, escondidinhos e outros lugares comuns.O ingrediente é a porta de entrada da culinária.

Então, para se chegar à culinária brasileira – esse terreno no qual, idealmente, queremos cozinhar – é preciso dedicar muito tempo a inventários do que existe, interrogar cada ingrediente e o que ele pode nos dar. E inventariar também o que a “tradição” fez com cada produto. A massa da empadinha, por exemplo. Não há uma ortodoxia sobre ela.

O Atala – e é sempre obrigatório citá-lo nesse assunto – encasquetou com a priprioca. Fez uma sobremesa bem legal. Agora, mais recentemente, experimentei um siri mole com manteiga de priprioca no DOM. Muito bom. E fico pensando que o cara está estudando a priprioca há quase um ano para tirar dela duas míseras preparações. Outros, trabalhando com a mesma priprioca, chegariam a outras preparações.

Pessoalmente, gosto muito da iquiriba (Xitopia sericea), do seu aroma de resina de madeira. Até agora não consegui ir além de uma calda, que uso com chocolate. Se não for a imaginação que me falta é a persistência, que sobra nos poucos chefs obcecados. Vou pôr um tanto das sementes de iquiriba na mão da Roberta e de outros chefs interrogativos para ver se infecciona a cozinha deles.

Seremos um pais melhor, culinariamente falando, quanto mais forem os aprendizes de cozinheiros que se debruçam sobre os ingredientes em vez de se perderem na literatura das receitas. Um excelente começo é, em vez de livros, xeretar todo dia o blog da Neide Rigo. Ela pesquisa, identifica, traz para a luz do dia o que estava oculto.

3 comentários:

Claudio Moeiro disse...

"Um curso geral de culinária deveria começar pelo estudo o mais exaustivo possível dos ingredientes gerais: as carnes, os peixes, os legumes e verduras, as frutas."

Ok, vamos lá: quais aspectos específicos dos ingredientes comporiam tal estudo exaustivo:
- sazonalidade e origem
- critérios para escolha do melhor exemplar
- propriedades fisico-químicas (perfil de comportamento quando submetido ao calor, à cura, às marinadas, ao frio), aromáticas, sápidas, de textura, cor
- técnicas de preparo
- harmonização com outros ingredientes (e suas respectivas sazonalidade, etc...)
- presença nas gastronomias regionais
- presença na gastronomia internacional

E o que mais?

e-BocaLivre disse...

Acho que harmonização, regionalização/internacionalidade já são etapas mais avançadas, não?

com meus botoes disse...

Restringindo o assunto ao simples e trivial arroz com feijão...
Estudar as variações de sabor desse prato combinado a cada mudança de grão(explorando todos os tipos de arroz e todos os diferentes feijões de que dispomos e também os que a Neide vem apresentando).
Quantas combinações diferentes seria possivel obter e com qual variedade de cor, textura consistencia e sabor?
Só aí acredito , teremos assunto para um ano inteiro também.
Algo tão perto de todos nós e incrivelmente pouco explorado.

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