Já que estamos falando sobre revistas de gastronomia, vamos avançar um pouco.
Uma limitação que sempre sinto nelas é de foco. Celebram receitas, chefs, dos restaurantes, produtos. Não raro incluem também módulos informativos, que deixam de ser importantes na medida em que as informações estão mais e mais disponíveis na web. Não vão além disso.
Seu papel primordial poderia ser outro. Analisar as tendências, antecipar o que está acontecendo, mostrar os rumos; desvendar os processos de trabalho e situá-los na gama de possibilidades que o crescente domínio técnico em gastronomia propicia. Nem sempre ocorre isso.
A palavra celebração resume a atitude editorial. Ela é visível no esforço de endeusamento dos chefs, projetando-os como principais artífices da cultura culinária; no elogio da estética construtiva nos pratos (e dá-lhe fotos coloridas de montículos de comida!); de alguns ingredientes que, como bolas da vez, parecem mais “nobres” do que os infinitos ingredientes sobre os quais se silencia.
Na sua trajetória, épocas históricas são visíveis. Elas ensaiaram a feição atual com a nouvelle cuisine. Naquele contexto era necessário endeusar os franceses-civilizadores que nos chegavam, a mando de chefes estrelados d´além mar. Era preciso frisar a dinastia a que pertenciam. Então, nada melhor que expor as receitas, os cacoetes franceses e suas adaptações tropicais. Os ingredientes estavam em fase de substituição de importações.
Depois, veio a época dos chefes nacionais e uma nova onda de celebração. Essa tendência foi se maximizando e não havia chefs em quantidade que ostentassem a fama dos primeiros. Então, começaram a surgir os chefs da periferia do sistema. Desde a Vila Guilherme aos cafundós de Minas, Bahia, etc. E o conceito entrou em crise.
Daí vieram os receituários tradicionais recortados por uma vaga idéia de terroir e, depois deles, finalmente, a era dos ingredientes. Mesmo aqueles chefs que celebravam a ortodoxia nas receitas, acordaram para a liberdade dos ingredientes. E vieram as inovações em torno das tradições nacionais, muito a reboque das influencias de Adrià e dos outros espanhóis. Hoje, falar em receitas tradicionais ficou demodée. Melhor “inventar”.
Mas as formas das invenções também seguem suas modas. Hoje, temaki. Tem temaki de tudo. Amanhã, descobrirão a China e um novo ciclo inventivo se imporá. E descobrirão o Brasil! As farinhas, por exemplo, virão em enxurradas. Gente que nunca comeu farinha irá quebrar a cabeça para classificá-las e entendê-las.
As modas se sucedem e é natural que seja assim. Não leva a nada discutir se as revistas “seguem”, “difundem” ou “criam” modas. O mais relevante é que, na política de celebração, vivem fracionando o processo culinário e dificultando a sua intelecção. Me explico.
Se deixarmos de lado por um momento os chefs, as receitas e a celebração de certos ingredientes (não importa se foie gras ou farinha dita “ovinha”) veremos que a culinária é um empreendimento coletivo, complexo, que vincula a terra, o trabalho e o consumo urbano.
Conheço chefs que não sabem comprar frutas na feira. Nem por isso deixam de ser celebrados nas revistas especializadas como jovens “modernos”, tatuados e charmosos. Mas nos seus restaurantes só se come abacaxi, melão, mamão e manga como “frutas da estação” em qualquer estação. Há uma tendência muito forte de só “criarem” a partir do que chega à porta dos restaurantes. Dar uma nova embalagem para a Nutella, por exemplo. A anti-gastronomia se propaga como expediente empobrecedor do comer moderno.
Entendo que as revistas não deviam celebrar a preguiça, como nesses exemplos. E o que deveriam celebrar, se é de sua natureza celebrar?
Num esforço editorial de natureza pedagógica deveriam recriar o ciclo da gastronomia: rastrear os ingredientes e produtos, as suas formas de manipulação e conservação – antes do restaurante e dentro dele – e se dar conta de que o agricultor, o pescador, o comerciante, os trabalhadores da cozinha, os garçons e o chef são, igualmente, responsáveis pelo resultado que chega à mesa do cliente.
Os grandes chefs internacionais já acordaram para isso. Quando falam em “sustentabilidade” estão se referindo à responsabilidade disseminada por toda a cadeia do produto que se transforma em matéria-prima nos restaurantes.
Quanto tempo leva um peixe pescado no sul da Bahia para chegar à mesa do restaurante paulistano? Por que os chefs ainda compram peixes em tamanhos que são vedados para a pesca? Por que não se estuda o que realmente se passa com os salmões de granja e a resistência das autoridades sanitárias norte-americanas em relação ao consumo desses pobres animais?
Só a diretriz editorial de uma revista de gastronomia pode criar o estimulo/desestimulo a essas práticas, pois ela esta a meio caminho entre a consciência do chef e a consciência do consumidor. Se não se posiciona, estimula a mesmice – mesmo quando “criminosa”.
Mas as revistas, assim como os chefs, se metem nos atoleiros que são expressões como “orgânico”, “natural” e coisas assim. Não dizem nada. São mistificações novas que escondem velhos problemas.
É claro que o papel educador da revista contrasta com a sua função de mero catálogo de produtos de consumo alimentar. Hoje a “pedagogia” das revistas é a mais rebaixada possível: acreditam que o público leitor SÓ quer receitas, aprender a fazer algo...
Não existe uma revista distinta no mercado brasileiro, embora exista nos mercados francês, italiano, espanhol, norte-americano, etc. É uma lacuna que precisa ser preenchida e o modo mais fácil seria a conversão das atuais revistas a uma nova diretriz. Claro, poderá surgir em algum momento uma revista-conceito, diferenciada. Mas a lacuna é bem maior do que uma simples publicação possa suprir.
Necessitamos de uma nova cultura, uma revisão profunda da política editorial das revistas de gastronomia – caso queiram influir na criação do futuro. Se abdicarem a isso, outros desempenharão esse papel.
04/02/2010
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6 comentários:
Dória
Estou adorando seus comentários a respeito do mercado editorial das revistas. O modelo 'festejo' já passou definitivamente! Falo pelo que ouço dos leitores, cansaram de tanto 'frufru'. Não conseguem acompanhar o requinte proposto, bem como essas revistas falam de uma realidade local, muito paulista, um pouco carioca, que fica anos luz do resto do Brasil o que desestimula o interesse em acompanhar essas publicações. Fica restrito ao público que se diz "foodie" (?) e já mais para lenda que realidade devido à crise internacional.
Abraços
Janine
Prezado Dória,
Meu nome é Rusty Marcellini e sou um de seus leitores fiéis. Admiro e o pabenizo seu trabalho. Conhecemos algumas pessoas em comum (Luiz Américo, Li An, Eduardo Girão), mas ainda não um ao outro. Concordo com suas opiniões sobre a linha editorial das revistas de gastronomia e complemento: infelizmente não existe no país a crônica gastronômica simples e pura. Uma pena, pois são muitas as histórias fascinantes que existem pelo interior do Brasil. Sou autor e fotógrafo da série de livros "Caminhos do Sabor", apresento diariamente o programa CBN Sabores BH, e escrevo para o jornal Hoje em Dia, em BH.
Um grande abraço,
Rusty Marcellini.
rustymarcellini@hotmail.com
Olá, Carlos Dória!
Meu nome é Valeria Berriel, sou cozinheira formada há 5 anos e atuo na área desde então! Entendo muito bem quando se refere ao "estrelismo" e creio que posso dizer à "utopia" que os meios impressos do setor passam aos leitores mais leigos!
Me arrisco a afirmar que a maioria dos empresários do setor não se preocupam com a cadeia de sustentabilidade, pois estão mais preocupados com o lucro mesmo! Muito menos ao que se refere ao comprometimento, técnicas, ou até mesmo com a comida e seus clientes, refletido nos baixos salários pagos a nossa categoria. Os tempos são outros, e pouco importa o amor à arte de transformar ingredientes em prazer, o negócio é faturar! Sendo assim, afirmo que as revistas gastronômicas não são meios de formação de opinião, e sim "outdoors" impressos e compilados!
Dória,
parabéns novamente, acredito que pouco ou nada tenha restado a dizer.
Espero apenas que suas palavras cheguem aos olhos que contam, e não apenas às bocas que devoram.
É, a função crítica pressupõe independência econômica e estas revistas que estão aí, até onde posso perceber, são muito dependentes do circo que movimenta a indústria de alimentos.
Por algum tipo de coincidência, escrevi um artigo em outubro último que me parece contribuir para esta discussão. O endereço é http://falandodevinhos.wordpress.com/2009/10/03/reflexoes-do-fundo-do-copo-o-vinho-e-o-critico
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