28/06/2010

Deambulação gastronômica pela França - IV

: melhor que tudo é andar pela rua, observando vitrines, entrando e interrogando os artesãos da gastronomia. Em nenhum outro lugar do mundo essa atividade é tão diversificada e divertida.

As feiras livres, por exemplo, apresentam nessa época os primeiros frutos da primavera, como os alhos frescos, os frutos vermelhos, alguns cogumelos. Há uma alegria em tudo, e ela parece brotar da natureza. Para um paulistano o impressionante é que as feiras tenham resistido a um processo de urbanização tão radical mas que, em nenhum momento, feriu a incolumidade do comer. Elas estão lá porque é essencial a qualidade da alimentação. Até mesmo os supermercados, como o Carrefour, ou o Bon Marche, precisam mirar-se nelas para ter alguma chance de vender frutas e legumes.

E se você entra no Bon Marche na hora do almoço, surpreende-se com as enormes filas na seção onde se compra pratos prontos, além da variedade e qualidade do que oferecem. Para este, o modelo não é a feira, mas os inúmeros traiteurs que se encontram em qualquer esquina ou quarteirão.

O bom de Paris é percorrê-la como se fosse pela primeira vez, e faço um esforço para reconhecer as novidades em meio a tanta permanência. Os traiteurs orientais, por exemplo: vietnamitas, chineses e japoneses. Tudo se pode portar para casa. Ou se comer ali mesmo. Nos bairros mais populares, os kebabs invadem a cena culinária de rua, como as crepes de Nutella. A sensação é que o francesismo culinário escorre lentamente entre os dedos; que ele só sobrevive graças aos renitentes tradicionalistas e aos turistas.

A profusão dos traiteurs e dos bistrôs tece essa França que lemos nos livros, vemos nos filmes, aprendemos nos cursos de culinária e gostaríamos que se expandisse entre nós. Mas é inegável: ela está submetida a pressões que antes não existiam tão forte. Talvez seus mais sólidos pilares estejam fora de Paris, na campagne. Foi a sensação que me deu ao comer um confit de coelho em Tours, no Loire. Tudo lá cheira à tradição: embutidos, queijos, geléias, mel...

Recorrendo à memória do “antes”, visito alguns endereços. Constato que Christian Constant, pioneiro chocolatier, teve que se mudar da rue du Bac para a rue d´Assas, ocupando um endereço mais modesto. Seus chocolates são ainda de grande qualidade, é inegável, mas em cada quarteirão é possível encontrar um chocolatier, inclusive belgas, num movimento que parece dizer: o chocolate chegou para valer! E Christian Constant, outrora tão “campeão”, é hoje mais um traiteur que insiste em manter o chocolate como estrela da sua confeitaria. Difícil também resistir ao Valrhona, que se encontra em qualquer prateleira de supermercado e que, aqui, reveste-se de uma nobreza que já não consegue ostentar em Paris.

Sob a mesma forte atração, você vai a um restaurante tradicional. O Le Duc (243, Bld. Raspail), especializado em peixes. Aristocrático, com manobrista à porta. Paredes revestidas de madeira e decoração clássica, inclusive ostentando um casco de tartaruga do tempo em que não era politicamente incorreto.


A idéia é tomarmos um Montrachet Grand Cru, bacanudo, que levamos. E o garçon, sem papas na língua, pergunta: “Vocês também trouxeram o peixe para prepararmos? Nós temos esse vinho também”. E pergunto: “Da mesma safra, do mesmo produtor?” Não; mas a falta de gentileza parece nossa. Assim como quando se toca numa cereja na feira, a França tradicional reage num só gesto. Mas tomamos uma segunda garrafa, da adega da casa; comemos trilhas, salada de caranguejo, gougères de peixe e frutos do mar que revelam no empanado o brilho dourado do zaferano; e, ao final da refeição, não resistimos: “Senhor, o seu peixe é melhor do que o nosso, mas seu vinho deixa margem a dúvidas”. Ele ri, conciliador.


Também é um espetáculo à parte percorrer a Place de la Madeleine. Talvez em poucos lugares do mundo se possa fazer um giro tão curto e gastar tanto dinheiro, sentindo que não se adquiriu tudo o que queria. Fico pensando que, no passado, gostava mais do Fauchon e, hoje, me parece que Hédiard é mais completo e capaz de incidir mais diretamente sobre os meus desejos. Eles possuem um blend de inspiração chinesa, o hung liu, ou “cinco perfumes”, que é o melhor que já encontrei. E adorei, ao entrar, ver os vendedores colocando nas prateleiras os potes de geléias recém-feitas de laranja amarga.

Mas o luxo, como em toda parte, é uma emoção limitada. Muito mais impressionante é ver as fromageries galonadas, onde os proprietários, como Rodolphe le Meuanier, em Tours, podem ostentar o título de Meilleur Ouvrier de France et Meilleur Fromager Internationale, concedido em 2007; ou na fromagerie parisiense da senhora Marie Quatrehomme ( 62, rue de Sèvre) que ainda ostenta o mesmo título, obtido no ano 2000. A França é um pais onde a força do “ouvrier”, em gastronomia, nunca caduca – diferentemente daqueles paises onde as grandes obras parecem fruto do gênio e da magia que os franceses sabem que nasce do trabalho duro, atento, preciso, de dominar a natureza.

1 comentários:

Breno Raigorodsky disse...

Carlos Alberto, este seu passeio pela França nos dá inveja em vários aspectos e este plural é justo porque penso falar em nome de todos os leitores, mesmo que não tenha sido a mim delegado tal representação. Você é observador atento de tudo que se pode escanear em termos de comida, apesar de ter suas preferências, como todos nós. Mas queria ler de você algo sobre as ostras, algo sobre a comida simples das brasseries, das mergues, dos omeletes e dos steack.

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