Um dos momentos cruciais na história da humanidade foi aquele no qual se estabeleceu uma divisão sexual do trabalho, impondo o altruísmo e a solidariedade (fazer algo para o outro, e não para si) como uma necessidade que propiciou a evolução da espécie. De um lado a caça e a coleta, de outro a cozinha e, no centro, os cuidados com a cria que, por vários anos, é inabilitada para prover a própria existência.
Uma conseqüência disso é que os “saberes culinários” se tornaram, na quase totalidade dos povos pré-urbanos, uma herança que se transmite matrilinearmente. Não todo o saber, é claro. Mas aquele que traz a marca do altruísmo. Lembro de uma receita antiga, de arroz com caldo de carne, de Rupherto de Nola em seu livro editado em Logroño em 1525 – uma das primeiras obras impressas de culinária - onde esse cozinheiro sugere variações na receita e, observa: “quando se coze com caldo de carne não é necessário colocar nenhum tipo de leite, mas tudo depende do apetite dos homens que a comem”; ou seja, recomenda às leitoras que cozinhem altruisticamente segundo o desejo dos homens.
Recentemente surgiu um livro extraordinário, Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro, editado pelo Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane, da Fiocruz, pela Editora da Universidade Federal do Amazonas e pela Ong FOIRN. Ele mostra um Brasil indígena a partir da cozinha, e se trata de uma cozinha totalmente feminina. As cozinheiras, de várias etnias, são as “donas” das receitas. “Dono”, na cosmologia indígena, nada tem a ver com a nossa noção de propriedade privada, mas revela uma ligação estreita entre as coisas da natureza e os humanos que passam pelo saber de alguém.
O saber feminino ainda é celebrado numa vasta literatura culinária, mas não se pode dizer que a cozinha continue um universo fechado sobre a feminilidade. Quando extravasou o universo doméstico, ganhando os restaurantes, hotéis e fábricas, começou a sua desfeminilização. Em outras palavras, a urbanização acabou com o monopólio feminino sobre o cozinhar. E isso se deu de duas maneiras: pela externalização dos processos culinários, através de novas mudanças na divisão social do trabalho, e pela cristalização dos gestos culinários em ferramentas, isto é, desincorporando-os do feminino.
Os grandes chefs da história da gastronomia são homens. De Antonin Carème a Ferran Adrià não há dúvidas de que estamos diante do elogio do trabalho masculino. E se nos ativermos à obra de Auguste Escoffier veremos que ele, ao longo de sua vida, esforçou-se por desenhar, dentro da cozinha, a linha de montagem de uma fábrica de alimentos – toda ela apoiada no trabalho masculino. Basta observar uma das tantas fotos suas em meio às brigadas dos hotéis cujas cozinhas dirigiu. As mulheres são raríssimas nessas fotos.
Talvez por isso mesmo, por se tratar da transferência de um saber tradicionalmente feminino para um universo masculino, é que foi necessário, para ele, formalizar todos os gestos, criar um vocabulário controlado e assim por diante: parecia a “invenção” da cozinha masculina num mundo em que os homens nada sabiam previamente sobre o cozinhar.
19/07/2010
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2 comentários:
Muito bonito o arremate da postagem, muito interessante todo o raciocínio, mesmo que a reflexão tenha ainda este aspecto especulativo que nos permite este veículo, o blog. Pois, longe de ser uma conversa entre acadêmicos que exigem comprovação bibliográfica a cada afirmação, aqui o espaço é mais livre, a troca de idéias mais rápida.
Dória, post muito interessante. Uma constatação que eu ainda não tinha percebido. Incrível isto! Que as Robertas Sudbracks, Carlas Pernambucos e outras façam jus ao exercício da cozinha e nos defendam!
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