“Só para nós não morre aquilo que morre conosco”
D´Annunzio
Cliente sempre tem razão. Devolve o camarão porque está “cru” ou malpassado. Ou então afasta o prato, como a dizer que o animal onívoro é uma ilusão da ciência. Os chefs não sabem o que fazer. “Se eu mando um camarão no ponto que eu gostaria, não raro o cliente só come o rabo, que está mais cozido, e despreza o resto”, diz, perplexo, um chef de destaque.
No geral, o cliente está disposto a defender a tradição. Ele rejeita tudo o que não seja bem cozido. Ou cru, como atesta a proliferação de restaurantes japoneses. Mas entre o cru e o cozido -seja lá o que signifique objetivamente cada termo- parece residir um “defeito” de preparação. Mas quando este ponto é buscado intencionalmente não se trata de defeito. O defeito reside onde o trabalho falhou nos gestos que levariam ao resultado planejado.
Qualquer gourmet sabe que o foie gras revela as melhores qualidades do fígado de ganso ou pato, potencializa seus aromas e sabores sutis, quando cozido a baixas temperaturas por um tempo limitado. O fígado fica “mi cuit”, como se diz. A carne vermelha sangrenta (“saignant”) é apreciada em quase todas as churrascarias, ainda que não pela totalidade dos clientes. Parece apenas uma “questão de gosto”, jamais um defeito. Só para carne de porco é imperativo o ponto ultracozido, memória cultural de antigo anteparo sanitário à sujidade bíblica desse animal.
O ponto de cocção dos peixes também possui o seu “saignant”. Ele é óbvio no caso do atum pela sua coloração próxima à da carne de animais de “sangue quente” (e se são “quentes” talvez não requeiram mesmo tanto calor...). Para outros peixes, o ponto é chamado tecnicamente “rose a l’arête” (rosado na espinha) - que é quando o animal parece cru por dentro mas a espinha se destaca facilmente da carne. Ainda que muito sujeito a controvérsias, o “rose a l’arête” parece inadmissível quando em mariscos ou moluscos... que sequer possuem espinha. Nestes casos, não raro, o que se vê à mesa é a repulsa. Ao gourmet desavisado parece faltar o chão, pois foi empurrado para o abismo.
O que é isso que causa tanto asco, estacionado a meio caminho entre a natureza crua e o antegozo do cozido? E facilmente se aceitaria que é uma questão mais afeita à psicanálise do que à gastronomia.
Psicanálise do fogo. Gaston Bachelard dá o mote: “O fogo sugere o desejo de mudar, de apressar o tempo, de levar a vida a seu termo” . E o gastrônomo é, como o fogo, um predador voraz. O seu desejo é um fogo interior que o consumirá se ele não consumir o que o despertou. Ele está sempre em desarmonia com a natureza, e as refeições são gozos que serenam o desvario.
O gourmet é sobretudo um predador covarde. Não se expõe em campo aberto ao perigo do animal que luta, nem à gosma dos moluscos, e mesmo os vegetarianos parecem animistas piedosos e hipócritas. O gourmet só se apropria da natureza morta e esta, como tema da pintura, visa celebrar o seu triunfo mesquinho sobre a pulsão vital, através de uma representação metonímica.
A ostra viva parece uma exceção. Mas acaso haveria algo mais inofensivo do que a vida da ostra que se esvai enquanto pingamos sobre ela gotas de limão para surpreender-lhe o estertor? O limão é a sentença de morte que, pessoalmente, administramos ao animal trazido ao patíbulo da mesa. Aos neófitos horroriza este ritual que é observar a contração agônica do molusco. Horror que a vivência e o tempo atenuam. Horror que não se mostra diante do ascetismo do sushi, pois neste a vida foi tão miudamente retalhada que é impossível reconhecer traços da “anima” que se dissipou.
Mas a gastronomia é, através das suas modas, expressão do espírito de época. É possível mesmo que certas filosofias se aproximem de determinadas culinárias, o que daria razão aos chefes ultramodernos que costumam batizar de “filosofia” os conceitos simples nos quais apóiam as suas práticas. Assim, podemos indagar: o que pretende esta cozinha que nos empurra para o meio do caminho entre o cru e o cozido ou, em outras palavras, qual a sua filosofia subjacente?
Mas voltemos à ostra. Tecnicamente, a ostra ao limão não é “crua”. Dentre as formas de “cocção sem fogo” está a submissão do alimento a um meio ácido. ”Marinar” (submeter a um “mar”) é outra forma corrente de transformar o alimento. Também ao bacalhau o sal suga a “anima”, convertendo-o em coisa comestível sem mais delongas. O álcool vertido sobre a clara do ovo produz uma espécie de “ovo poché”, e a gema batida com açúcar é dita “cozida” pelos pâtissiers.
A coisa salada, desidratada ou coagulada tem passe para o mundo dos “cozidos”. Assim como o calor, outros processos alteram a organização das moléculas, produzindo o mesmo efeito. Por isso o cozinhar, como sinônimo de “aquecer”, ficou na galeria dos arcaísmos, ao lado da fronteira ultrapassada dos 100 graus centígrados. Só os dicionários sustentam a idéia anacrônica de que a fonte da cocção é o calor.
Quanto mais se controla a cocção de modo exato, mais fica claro que a passagem pelo fogo também simboliza a “passagem” da natureza para a cultura, ocupando a culinária o centro desse processo de afastamento da pura naturalidade. É um processo que coincide com a construção de uma “segunda natureza”, apoiada na técnica, nos instrumentos, na linguagem e no próprio fogo controlado; e as mitologias dos povos sempre organizam algum discurso sobre essa passagem, em geral como fruto da intervenção de um herói criador.
No pólo oposto à cozinha está a podridão, o terreno no qual o alimento desliza, de modo lento ou rápido, de volta à natureza, decompondo-se, pela ação dos fungos e bactérias, nos elementos minerais que antes estavam organizados. Os gourmets tentam ainda, desesperadamente, segurá-lo no despenhadeiro por onde se precipitam, celebrando a culinária da coisa “faisandé”.
Ao controlar o processo de deterioração, a própria cultura ampliou as suas fronteiras, incorporando mais natureza. Também por esta vertente há uma história. Descobriu-se a penicilina, a “podridão nobre” dos vinhos de Sauternes, os queijos etc. Pasteur é, inegavelmente, um herói criador moderno. Foi ele quem nos deu as conservas duradouras.
Como para as descobertas de Pasteur, as investigações sobre a cocção a baixas temperaturas também tiveram uma motivação prática: era preciso eliminar as salmonelas encontradas dentro do ovo, sem destruir o ovo poché. Os ingleses não viveriam felizes sem o seu ovo quente matinal, e a gastronomia -como a política- visa a administração da felicidade.
À meditação em torno do ovo contaminado se deve a ocupação culinária do território gastronômico que se aninhava entre os 60 e 100 graus centígrados. Hoje, muitos chefs se notabilizam por explorar esta faixa térmica. Desenvolve-se aí, por exemplo, a cozinha no vácuo. A invenção de instrumentos como o Termomix é apenas um desdobramento tecnológico dessa nova necessidade. Outros chefs, diante da queda das barreiras térmicas, já exploram o território do ultrafrio (a cocção em nitrogênio líquido), como se buscassem o antifogo. Certamente, das profundezas do freezer, será necessário arrancar e descongelar uma nova filosofia...
Mas a inclusão de peixes e crustáceos na “terra-do-meio” que é o domínio do “meio cru” diz respeito à preparação cultural da sociedade, e não apenas à criatividade e à inquietação do chef. Um crustáceo, despido do seu exosqueleto, se nos revela como um verme com excessiva liberdade, uma potência ameaçadora. Amornado, dissimula o propósito de nos comer por dentro, mas não engana o astuto. E só sentimos segurança quando ele está paralizado pelo rigor cadavérico que a cocção profunda impõe. O fogo, que leva a vida ao seu termo, nos salva, mas se a cocção pára a meio caminho parece que a natureza irá nos devorar triunfalmente. Aí, o gourmand não come. Simplesmente afasta o prato. Como o personagem humilhado de um conto de Clarice Lispector.
23/11/2010
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6 comentários:
Bonito texto, Dória.
Parabéns!
Abraços!
Muito obrigado, caro.
Abraços
Belo texto mesmo, Dória.
Parabéns!
Aproveitando o mote dos ovos, diversos lugares aqui em São Paulo têm se recusado a servir as gemas moles, e no Viena há até placa dizendo ser imposição legal. Você sabe se há mesmo norma proibindo a venda de ovos malpassados por estas bandas? Inicialmente não encontrei nada em minhas buscas...
Abraços!
Torresmo,
eu não conheço essa norma sobre ovos, se é que existe. De qualquer modo ela seria uma das tantas normas burocráticas "burras", pois o ovo dito "perfeito" se faz com cerca de 64ºC, acima da "temperatura de perigo" que, segundo os microbiologistas, está entre + 5 e + 60ºC.
Abraços
Fantástico!
Belo e interessante texto. A frase de D´Annunzio já incita o que virá, mas o texto percorre um caminho fascinante. Talvez pelo fato de ter nascido na Liberdade (embora não seja oriental) e ter sido criado à beira do fogão de uma avó italiana e outra libanesa, tive a oportunidade, desde criança, de provar a carne crua temperada do polpetone, ou o kibe cru, o peixe quase cru com molho de tahine, e infelizmente os ovos crus da gemada da infância (aos quais até hoje repudio).
Em suma - cresci acostumado ao estado quase natural de alguns alimentos. Sinto um certo sentimento bárbaro em relação a isto, talvez uma busca de um sabor original, ancestral. Por isto seu post entra no rol dos que serão relidos mais algumas vezes, assim como Clarice Lispector. Abs!
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