Viver é perigoso, ensinou Guimarães Rosa. Mas os riscos a que se referia estão bem distantes daqueles que hoje se imagina escondidos na comida. No mundo de Riobaldo não existem micróbios, como nos vendem os higienistas de todas as cepas. Só havia Hermogenes, o “tigre assassim”. O “risco” de hoje é dificil de ser decifrado, mas precisamos nos esforçar, pois tem se tornado um incomodo para o viver (e comer) livremente.
Foi dito por Savarin a célebre frase que se repete à exaustão: “diga-me o que comes e dir-te-ei quem és”. Pois então: comemos salmão chileno. Me da nojo saber que eles são alimentados com ração à base de pena de galinha. E me pergunto: se eu sou o que eu como, não são os salmões o que comem também? Ou eles tem um misterioso mecanismo de purificação que eu não tenho e, por isso, posso comer pena filtrada por eles?
Parece que os vínculos com a natureza permanecem contaminantes, apesar dos processos de transformação que a fazem desembocar no prato, sendo necessário manter distância. Mais do que a distância que o garfo impôs, agora é com a mão cujo trabalho conformou o produto; com os equipamentos; os insetos do ambiente e assim por diante.
Parece até paradoxal que haja, na cidade, um restaurante que se chama “Sujinho” e que, na minha juventude, era conhecido como “Bar das putas”. O diminutivo de hoje é uma metáfora carinhosa do realismo do passado. A linguagem se transforma também por impulsos morais-sanitários. Que eu saiba, nunca se constatou ali uma barata.
Houve época em que os chineses eram considerados sujos em suas pastelarias paulistanas. Campanha pública de “higiene” afastou-os da atividade, servindo para introduzir no ramo os “limpinhos” japoneses. Foi um vereador da colonia japonesa, aliás, quem comandou a campanha. Mas, parece, foram os chineses que inventaram o pastel. Informação útil numa época de comidas étnicas limpinhas.
É claro que chineses não possuem a mesma concepção de “limpeza” que o Ocidente, o que não quer dizer que a sua cultura - muito mais antiga que a nossa - não tenha provido a vida dos mecanismos defensivos suficientes para atingir uma população daquele tamanho. Por contraste, vemos que o problema em nossa moderna sociedade é que ela demarca territórios com uma sujidade em parte imaginária. Antropólogos já falaram sobre isso em livros clássicos (Pureza e perigo, de Mary Douglas).
No plano vivencial, lembro de um gesto infantil que consistia em assoprar ou esfregar na roupa um biscoito que tivesse caído no chão como suficiente para restaurar a higiene. Mas era preciso também lavar a mão após se pegar em dinheiro, coisa que não ocorre quando se pega euros ou libras esterlinas; ainda é preciso fazer exames de pele para entrar na piscina do club, coisa que não se faz nas piscinas públicas de Paris. Nos auto-representamos como um povo de corpo sujo e sujeito a inúmeras contaminações por contato. Em muitos lugares, substituiu-se o acolhedor cafezinho por um display com álcool gel para limpar as mãos. Talvez, acima de tudo, tenhamos mentes porcalhonas.
Padrões industriais - laboratoriais - de limpeza se impuseram, as vezes com o auxilio da lei de um Estado que parece não ter mais o que fazer, de tão “minimo” que ficou (senão de fato, moralmente). A publicidade da TV povoa o mundo de “germes” e micróbios - expressões, alias, bem arcaicas - para vender sanitizadores de todo tipo.
Os cheiros são outra fonte de perturbação da ideologia higienista urbana. A começar pelos cheiros humanos. O cocô das crianças no banheiro, o cheiro íntimo da mulher, combatidos por desodorantes com aroma de moranguinho ou camomila. E dessa maneira, paulatinamente, vamos nos isolando do mundo real. Uma espécie de “analfabetismo aromático” vai envolvendo as pessoas, a ponto de já não identificarem o cheiro do morango natural, pois se acostumaram à sua representação química evocativa.
E cheiros antigos - como o cheiro de bosta dos currais, onde se ia tomar leite cru, tirado da vaca na hora - já causam repulsa e convulsões aos limpinhos da modernidade. Ao tempo da literatura de Monteiro Lobato ou Francisco Marins eram cheiros inebriantes da ruralidade.
Talvez por essa saturação Andoni reivindique o direito ao insípido - o que vale dizer, também ao inodoro - para reconstruir um mundo gustativo e cheiroso a partir de um marco zero. Também o Slow Food, na contramão da tendência inodorizante, quer reeducar o nariz, como forma de reapropriação da natureza.
(Segue)
06/06/2011
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9 comentários:
"...a ponto de já não identificarem o cheiro do morango natural, pois se acostumaram à sua representação química evocativa." Sensacional!
Meu amigo, tu então irias adorar dar uma passada por aqui em Belém (a capital, não o bairro que pra muitos paulistanos é a única — ou único — Belém que existe). Além da culinária única quevéu á deves conhecer, também temos vários cheiros ruins (e alguns bons), bastante lixo espalhado pelas calçadas e um micro Tietê que é atracão da elite.
Infelizmente o MP proibiu catadores de caranguejo de extrair a carne do crustáceo usando suas bocas e cuspindo os pedaços fora, mas ainda é possível comer cupuaçu extraído a unhas negras e cheirar esgoto (só 7% da cidade tem esgoto encanado).
Sim, talvez eu tenha mal-entendido o texto. Ou talvez essa coisas de se distanciar do mundo real limpando as mãos com álcool gel seja só higiene mesmo.
Cara, acho que você entendeu mal o texto mesmo. O que eu estou dizendo é que não precisa a polícia te obrigar a lavar as mãos; e o Estado, em vez de meter o bedelho onde não é chamado, devia prover saneamento básico - que tanto falta ai! E os seus caranguejos? Por que são tão "nojentos"? Quanto pagam por dia para as mulheres-catadoras? Elas é que são "sujas" ou é imundo esse capitalismo selvagem?
Breno, estive em Belem há bem pouco e fiquei sabendo da proibição do caranguejo, mas também fiquei sabendo que grandes empresas querem montar beneficiadoras de carne do crustáceo, acabando com o trabalho das catadeiras. É mais rentável a determinados grupos políticos beneficiarem os seus que prover as catadeiras de noções básicas de condições no e para o trabalho. Aproveitei e trouxe das catadeiras 04 kilos de carne e unha, continuo vivo e bem de saude.
Adelmo, você pensa estar falando com o Breno mas, na verdade, está falando comigo, Carlos Dória.O negócio das catadeiras de siri é muito grave, e tem levado chefs, como Thiago Castanho, a desenvolverem as suas próprias catadeiras. Repito aqui o que já expressei: o que pagam a elas só dá para viverem SE catarem daquela maneira anti-higiênica. É a superexploração do trabalho que determina a (falta de) qualidade desse produto. Acima de tudo isso!
Grato pela informação, meu caro Dória. Desculpe a desinformação. É que conversando com o Thiago e algumas catadeiras também, o buraco é mais embaixo. Nem o Thiago conseguiu autorização treinando e levando as catadeiras para o próprio restaurante. Um abraço,
Adelmo
Adelmo, exatamente! Você vê que um profissional responsável tem seus passos barrados pelo Estado-babysitter. Nem corrigindo o problema pode fazer...
Doria, à parte a importância do tema, bandeira de todos os apaixonados por queijos, à cada parágrafo lido, uma vivência pessoal tomava a minha mente e me fazia menear a cabeça com um suspiro e um sorriso tímido; tomo a liberdade de compartilhá-las com você, não apenas na tentativa de lembrá-lo de que não está sozinho, mas também por puro egoísmo e ânsia de compartilhar, o que não pôde ser feito com ninguém, em uma provável reação de blindagem das minhas remotas lembranças dos injustos rótulos de escatológicas e afins... Pois bem, tive esse mesmo sentimento durante o verão, no início do ano, quando voltava da minha aula de italiano, caminhando pelo bairro do Paraíso, naqueles dias quentes em que o sol realmente esquenta o asfalto e faz exalar o cheiro do xixi dos cachorros; também eu sinto saudades dos “cheiros inebriantes da ruralidade”, que me remetem a Catanduva. Obrigada por relembrar-nos de que bosta tem cheiro de bosta, e não de jasmim com alecrim, como muitos querem acreditar ao apertar um spray antes de sair do banheiro. Isso sim me parece escatológico, no sentido mais grego da palavra...
Quanto ao “analfabetismo aromático”, outro agradecimento aliviado, de quem fez uma geléia de morango com sementes de baunilha e teve de ouvir que estava gostosa, mas com gosto de algo artificial.
Por fim, lembrei-me dos inúmeros críticos do Jamie Oliver, que se preocupam muito com o fato de usar a mesma tábua de madeira e provar na colher o que está cozinhando; realmente é uma dádiva divina ter tantos filhos saudáveis sendo criados nessas condições precárias de higiene, com frutas e verduras colhidas no quintal... Fico me perguntando como sobrevivi ao sítio, às galinhas e aos cachorros, à invariável mão na boca e às bolachas assopradas; ainda hoje faço isso, mas tristemente olho para os lados, assegurando-me de que ninguém me observa... Abraço!
Bela rememoração, Sabrina. Obrigado
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