“Você já comeu galinha caipira? Gostou?”, me pergunta o governador do Acre, Tião Viana, um pouco antes do início de uma “tartarugada” feita numa fazenda no município de Xapuri, onde estavamos. Devia ser a décima pessoa a me fazer a mesma pergunta.
Eu havia comido galinha caipira por cinco vezes, na curta estada de quatro dias entre Rio Branco, Cruzeiro do Sul e Xapuri, e como nunca topei com frangos de granja em parte alguma, nem nos mercados já com cara de supermercados, imagino que a pergunta do governador tinha um sentido bem diferente dessa opção gastronômica que fazemos aqui, no Sudeste, a favor de um tipo de galinha criada solta, com a pureza restaurada pelo ciscar o terreiro.
Galinhas vivas, amarradas na garupa das motos em direção às panelas, a farinha de mandioca, os derivados da “goma” ou polvilho, parecem constituir, junto com as 12 variedades de feijões, a essência da dieta dos acreanos pobres. Coisas arrancadas da terra do próprio quintal, transformadas pela colaboração constante entre todos os membros da família, sem outras necessidades além da mão de obra. Num plano mais profundo, claro, estão os frutos da floresta, as caças, os peixes, mas sobre isso tudo nem sempre é bom falar.
Basta você perguntar pela paca nas “pensões” do mercado central de Cruzeiro do Sul para ver se formar um ar entre o cúmplice e o desconfiado no rosto das simpáticas mulheres que parecem ter trazido para a praça pública as suas próprias cozinhas domésticas numa cidade onde, talvez por falta de dinheiro, os restaurantes ainda são conseguiram se estabelecer. Nesses proto-restaurantes, o limite entre o proibido e o permitido não é claro. Afinal, o que garante que, diante do estranho, possam abrir os corações e as tampas das panelas? Pacas? “Hoje não...”.
Foi o jesuíta, Pe. João Daniel, na sua obra Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas, com mais de 1.000 páginas escritas na prisão pombalina do século XVIII, quem descreveu à exaustão as riquezas florestais do Alto Amazonas, ainda sem discriminar entre as fronteiras do Brasil e países vizinhos.
Nesse livro, de leitura mais que obrigatória para quantos se dizem pesquisadores da Amazônia, o padre descreve a aversão dos índios mansos ao milho e ao frango, plantando o primeiro apenas para alimentar os segundos que vendiam aos portugueses. Explica-nos também que a mandioca, por absorver tanta mão de obra, não deixou tempo livre aos nativos para desenvolverem outras obras de civilização; por fim, descreve as maravilhas dos sertões - dentre às quais as tartarugas - apenas fazendo ressalva pessoal aos vermes comestíveis, que lhe causavam asco.
Foi dessa ótica que me ocorreu, pela primeira vez, entender a pergunta do governador, como se fosse necessário ir ao território narrado pelo padre para entender as suas palavras.
A galinha é um divisor de águas na Amazonia que, ultrapassado, nos atira num vale-tudo alimentar do qual o ocidente ainda faz pálida ideia. Preferimos entender as nossas próprias coisas como “exóticas”, numa subversão vocabular que mostra o mundo invertido no qual vivemos ou comemos. E agora, no período pós-Adrià, nos reaproximamos da Amazônia, como se fosse um mundo novo. Mas “aqui sempre foi o fim do mundo. Agora o mundo começa aqui”, me explica Tião Viana.
(segue no próximo post)
09/09/2011
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1 comentários:
Doria, aguardando ansiosa o próximo post.
Tive o privilégio de morar por 22 anos no Acre e de volta ao sudeste sinto muita falta de encontrar no restaurante do bairro uma honesta galinha à cabidela, galinha caipira no caldo com pirão...só em sonho! Quem sabe um dia esses e outros supostos exotismos nos aproxime da Amazônia real e das nossas esquecidas raízes, do que temos de mais saboroso!
Abraços, Ana Paula
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