Meu espanto maior não foi, ao ler Dona Benta, suas imprecisões de medidas. Foi ao ler um livro de receitas português que dizia: “tome duas ou tres sardinhas por pessoa, dependendo do tamanho e da fome dos comensais”. Eu ainda resistia à ideia de que cozinhar implica em enorme dose de subjetividade - assim como apreciar o que se come.
Uma receita é um esforço de traçar um caminho para se chegar a um resultado único ou aproximado. A precisão é um mito fomentado pela hotelaria moderna. Basta ler Escoffier para ver o esforço que faz para desenhar procedimentos uniformes, inclusive nas medidas dos ingredientes.
Paladar de hoje embarcou na viagem da precisão. É dificil saber onde buscou tal inspiração. Mas resolveu confrontar as medidas descritas em receitas correntes, revelando o óbvio: não bate lé com cré. Faltou discutir qual a importância disso, pois a matéria passa a impressão de que estamos condenados a errar nas receitas ao nos apoiarmos em coisas tão sem padrão.
Já discorri sobre esse assunto no capítulo “A cozinha e a receita” no meu A culinária materialista (Senac, 2009). Acho que a visão mais ponderada é a de Paul Bocuse, que desdenha da importância das receitas: elas apenas indicam certas proporções entre ingredientes. Nada mais. Nem é preciso mais quando se cozinha. Às vezes, exemplifica Bocuse, somos obrigados a modificar quantidades, como quando mudamos o moinho que nos abastece de farinha. Mesmo sem explicitar, ele estava indicando que os elementos fisico-químicos que atuam na receita são mais importantes do que a exatidão das medidas. Mas o tempo também cuida de modificar os componentes e quantidades de uma receita. Exemplo: o excesso de açúcar na nossa doçaria, que as vezes pode ser corrigido. Acho que quem é obcecado por precisão deve procurar cozinhar no Thermomix, que oferece a impressão da precisão como algo maquinal.
Paladar tem o cuidado de mostrar a exceção: a patisserie exige a busca da precisão, como nos ensina o pequeno texto de Saiko Izawa Yoneda. Sobre essa japonesa aclimatada ao Brasil tive oportunidade de escrever aqui, comentando a excelente baba de moça que ela “revisitou” quando trabalhava no Dalva & Dito, esvurmando boa quantidade de açúcar. Não trabalha mais lá, nem a baba de moça é a mesma. Mas ressurgirá em breve, em novo restaurante comandado por Jeferson Rueda.
Enquanto você fica medindo com precisão obsessiva e sem importância, saiba que bimbalham os sinos, anunciando que o Natal é um porre. Quando não literalmente, pelo menos literariamente. Comida dedica sua capa à chatice. Natal de migrantes e imigrantes, sugerindo que ele viaja para todo lado e não tem como você escapar. Mesmo no Japão, onde ele não tem significado, o jornal diz que é associado a frango frito da rede KFC. Não entendi então porque está na matéria. Talvez para frisar que o Natal existe mesmo onde não há.
Seja como for, o jornal inova: falta aquele tradicional texto de abertura da matéria; apenas diz: “fugimos do tradicional peru e preparamos, para a noite de Natal, banquetes com pratos típicos...”. Esse plural lembra Paladar que, agora, com a inauguração da sua “Cozinha de Claudia”, realmente faz os jornalistas colocarem a mão na massa quando usam a primeira pessoa do plural. No caso das “medidas”, está claro que a matéria foi feita nessa “cozinha de Claudia”
Mas o mais ousado foi Comida dizer “fugimos do tradicional peru”, quando, na página anterior, vemos anúncio de pagina inteira do peru Sadia recheado. Afinal, deve-se ou não levar a sério as publicidades? Uma página pró-peru, duas anti-peru. You are kiding!! Será que a turma da Sadia sabia que se ia investir editorialmente contra o peru? Eu pediria meu dinheiro de volta, porque “independência editorial” tem limite!
Resenha de Josimar Melo sobre o Atmosphere traz uma boa notícia: a casa não cobra rolha e anuncia em alto e bom som: não cobramos rolha! Nina Horta denuncia uma das chatices de Drauzio Varella: a sua investida contra o fogão de lenha. Resenha de Luiz Américo sobre Chef Vivi. E estamos lidos...
15/12/2011
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5 comentários:
Carlos você é uma coisa, mesmo!! Já imaginou a verba investida nessa publicidade!
Dória, justo você, com esta cara de Papai Noel, descendo a lenha no Natal?! E os milhares de jornalistas, chefs e comentaristas de blogs que dizem que Natal é a época gourmet por excelência. Como ficamos? (Brincadeirinha), ri litros com sua ironia fina.
Dória, realmente esta precisão que muitos buscam nas receitas certinhas me irrita e muito. Hoje descubro delícias quase diariamente, justamente por desdenhar de medidas certinhas. Muito deste tema você vem falando com propriedade há tempos. Além do mais, meu trabalho em particular me dá esta liberdade para criar, descobrir e isto me fascina, sobremaneira.
Esta história do marketing com o Perú foi hilária.
Caro Dória, lembro de uma vez ter lido uma receita de bouillabaisse que iniciava com "...pegue um fundo de rede de peixes". Mais imprecisão, impossível. Poético, mas impreciso. Dona Canô prega que "o sal é um dom", em seu livro de receitas...imprecisas. Se não me engano, acho que foi M.F.K. Fisher que usava em uma receita as cascas dos ovos utilizados na receita como "medidas". Ainda tenho problemas em aceitar tantas gramas de ovos ou de líquidos, não consigo pesar a água de forma séria.
E adorei a questão marketing x peru,ótima. Forte abraço
Wair, mas os marselheses certamente sabem o que são os peixes de "fundo de rede". São uns peixinhos sem valor comercial, que colocam a cozer com escamas, barrigadas e tudo o mais. Fresquíssimos, ainda vivos. Navegar é preciso, cozinhar impreciso. Mesmo assim, pode-se fazer "a olho" maravilhas. Por isso as medidas exatas só introduzem insegurança nos cálculos.
Abraços
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