05/05/2013

A invenção das tradições culinárias regionais


Eric Hobsbawm foi um intelectual extraordinário, o que pode ser medido pelo número de questões que ele plantou no coração da historiografia, determinando fortemente linhas de pesquisa antes inexploradas. É o caso, por exemplo, do seu livro Rebeldes Primitivos. Ou, então, de A invenção das tradições, que estou relendo por conta de melhor compreender o regionalismo culinário.



Sim, porque este é um terreno típico de invenções, pois, como ele diz, “na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições inventadas caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial (...) É o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável aos menos alguns aspectos da vida social o que torna a ´invenção das tradições´ um assunto de interesse para os estudiosos da história contemporânea”.

Tomemos, por exemplo, o vatapá. Hoje se acredita que ele sempre foi feito com pão dormido. Este seria o “verdadeiro vatapá”, mas ao ler Manoel Querino ou Nina Rodrigues verificamos que, há pouco mais de 100 anos, ele era feito com “pó de arroz”. Ou, então, tomemos o acarajé: no passado era bem menor, longe de ser uma “refeição completa” com todos os seus recheios, conforme se lê em Vivaldo da Costa Lima, em Anatomia do acarajé e outros escritos - isso apesar dos esforços tradicionalistas para tombar as baianas do acarajé e o patrimonio imaterial que representariam.

Minas Gerais é um estado cujo “patrimonio culinário” é constituído em boa medida como “invenção de tradições”. O “arroz tropeiro”, o angu e tantos outros pratos reivindicados como “típicos” mineiros foram, nos séculos passados, de mais ampla incidência territorial. Pelos estudos mais recentes, parece que foi em torno dos anos 1970 que o governo de Minas Gerais e os intelectuais mineiros passaram a desenhar, inventando, esse passado imaginado. 

A tese de doutorado de Luciana Patrícia de Morais, Cada comida no seu tacho: ascensão das culiinárias típicas regionais como produto turístico - o Guia Quatro Rodas Brasil e os casos de Minas Gerais e Paraná (1966-2000), do grupo de historiadores liderados pelo Professor Carlos Roberto Antunes dos Santos, joga luz sobre esse problema que, antes, só conhecíamos pelo discurso oficial. Através dela pode-se seguir alguns passos desse processo, onde a imprensa teve papel ativo também.

Uma das coisas que esses estudos mostram é o papel do poder dos estados - essas regiões administrativas e políticas - na definição conveniente dos recortes culturais sobre os quais age, seja inventando novos objetos, seja favorecendo interesses turísticos. 

Esse parece ter sido um procedimento mais geral, segundo o que se lê no excelente Dictionnaire des cultures alimentaires (Paris, Puf, 2012), no verbete sobre “gastronomização” que mostra, entre outras coisas, como o guia Michelin e escritores como Curnonsky ajudaram a inflar os valores “tradicionais” dos terroirs e das regiões francesas. Portanto, está mais do que claro que o regionalismo culinário é um objeto legítimo do grande campo da “invenção das tradições”, a espera de pesquisadores que possam nos esclarecer as trajetórias particulares dignas de estudo.

2 comentários:

Unknown disse...

Bastante reflexivo, inclusive com exemplos de literatura. O Paladar deste ano está nos fazendo repensar no impacto do nosso consumo, da valorização de pequenos produtores juntamente com as tradições culinárias existentes em várias localidades e que por conta de nossa baixa auto-estima nos leva a acreditar que o de fora é sempre melhor, o produto importado nos dá "status", somos algo ou alguém a partir de um objeto seja ele como for. Reitero aqui minhas congratulações às duas críticas: essa e a anterior em que a reflexão da identidade e o o ranço que temos ainda é bem grande nas pequenas ações cotidianas.

Anônimo disse...

As invenções das tradições são as construções de ideologias, pelos atores que são hegemônicos (macroempresas) ou pelo Estado (que se atenta sobretudo ao capita privado, lhe garantindo fluidez, por exemplo). O que diferencia a valorização das tradições existentes de ser também um ideologia - e a criação desse contra-status que se transforma também em um outro tipo de status?

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