11/06/2014

A educação gastronômica do nariz


Já sabemos que a apreciação gastronômica envolve todos os sentidos e que a antiga exclusividade do paladar revelava um desconhecimento de como, de fato, funciona a totalidade da fisiologia humana. Mas tanto tempo de tratamento parcial nos fez afastar a questão de como se dá a educação do nariz ou do tato (este, ainda mais complexo). Salvo raras exceções - como a fumaça do carvão -  pensamos gastronomicamente no comer sem o cheirar, embora o aroma esteja lá. Conhecemos a mecânica da oposição dos sabores (doce, amargo, salgado, azedo, umami), construímos pratos sobre essa (fisio)lógica, mas o que dizer dos aromas?

Sabemos que o olfato dos animais é crucial na reprodução, pois permite identificar o cio da fêmea. Quando o homem se torna bípede, perde essa qualidade, mas  a seleção natural e a cultura acabam por solucionar a questão de outras maneiras. É razoável dizer que a cultura do olfato está baseada nesse hiato natural.

Num certo sentido, a culinária vive uma espécie de síndrome de Justiniano II, ultimo imperador bizantino, conhecido como Rinotmetos (“o do nariz cortado”) que impunha igual suplício aos inimigos. Há também, na literatura, o personagem imortal de Cervantes, o escudeiro Tomé Cecial, el desnarigado, que usava máscara com nariz de madeira, conforme foi representado por Gustave Doré. O nariz parece gastronomicamente desnecessário, a ponto de  o atual culto aos ingredientes não se preocupar em listar as sutilezas de aroma das coisas comestíveis.
 

A vida urbana afasta os narizes dos cheiros da ruralidade, mas a cultura culinária recente, contraditoriamente, quer se aproximar do produtor, dos processos de produção artesanal, enfim da “vida no campo”. Esse movimento, mais simbólico do que qualquer outra coisa, raramente consegue ultrapassar o hiato dos cheiros.  É difícil encontrar alguém “urbano” que aprecie, por exemplo, o cheiro de jatobá. Aquele “cheiro de chulé” que qualquer menino do interior aceita de bom grado quando tem contato com a sua farinha verde que gruda na boca, formando uma pasta que é preciso soltar com os dedos, chupa-los para voltar a comer, como se tivéssemos um segundo estômago na boca, à maneira dos bovinos. O jatobá é estranho. Estranhamente bom.
 

É estranho também ao urbanita o cheiro do morango silvestre. Em testes feitos, fica claro que o aroma artificial do morango é mais facilmente reconhecível do que o aroma natural do morango. O aroma artificial que mais se vende é o do morango. Até na intimidade feminina ele pode aparecer, por conta do raciocínio higienista que hoje a governa. Mulheres com cheiro de moranguinho fazem parte da fantasia feminina ou masculina? Seja como for, expressam uma modalidade olfativa de repulsa ao sexo.

A ligação entre sexualidade e comida foi explorada por diversos autores. Mais raras são aquelas que se estabelece entre aromas comestíveis e sexualidade, mas nunca é demais observar que Brillat Savarin apontava a descoberta da baunilha como elemento de valorização gastronômica, sendo que tanto a baunilha como o cravo, a canela, o cardamomo e infinitas outras especiarias também são componentes de perfumes. Estes, segundo o mesmo Savarin, foram criados como desenvolvimento do coqueterismo, cuja finalidade é aumentar a atração dos sexos. A indústria da perfumaria certamente tem sua ciência voltada para essa finalidade, mas em se tratando de alimentos prevalece o “moranguinho”. Há um valor no afastamento dos cheiros do corpo. Sexo, suor, fezes, precisam ser recalcados para que os cheiros da cultura prevaleçam sobre os da natureza humana.




Há, porém, outros caminhos a observar. O nobre espanhol José Ignacio Domecq Gonzalez (foto), conhecido como “el Nariz”, tornou-se o ícone de Jerez pela sua extrema capacidade de identificar aromas de vinhos e conhaques, o que o ajudou a alavancar sua próspera indústria. Ele encarna esse saber especializado dos que se dedicam à degustação de vinhos e que, em geral, estão atentos aos aromas naturais, inclusive a aromas “complexos” ou compostos, como os que os italianos chamam de sottobosco, conceito relacionado com matérias vegetais em decomposição, terra e cogumelos. Há vinhos que trazem fortemente o aroma sottobosco.

Um cheiro “complexo” que, para mim, remete ao meio rural brasileiro é o cheiro de curral. Um misto de bosta de vaca, capim fermentado, leite de vaca na ordenha, derramado ainda quente sobre o chão de lama. E a diferença entre “gostar” ou “não gostar” desse cheiro diz respeito à familiaridade precoce com ele. O mesmo poderia ser dito sobre o cheiro do frango caipira: o cheiro de ração animal que o frango de granja tem me causa repulsa. Trata-se de uma espécie de pitiú, como diriam os habitantes da Amazônia, só perceptível para quem comeu na vida mais frango caipira do que de granja.

E há aromas dos quais os brasileiros decididamente não gostam, como o cheiro de aniz, embora outros povos (árabes, europeus, asiáticos) o apreciem. Essas diferenças agem como marcadores que definem os contornos do “ser brasileiro”, do ser “rural” ou “urbano” e, certamente, diferenças de classes sociais. Alguns cheiros são considerados “cheiros de pobre”, como alguns aromas de pimenta, ou de cocção de miúdos. São então chamados budum.

Os cheiros são um imenso território a explorar e entender, como os sabores. As fronteiras entre aromas agradáveis e desagradáveis são culturais, históricas e móveis. Mutantes. E é por isso que faz sentido indagar: como se dá a educação do nariz para a gastronomia moderna? Não é possível, por exemplo, cultivar o ideal de “ruralidade”, trazendo-o através da aproximação entre a cozinha gourmet e os produtores, como se os produtos rurais fossem genuinamente inodoros.

Por isso seria bom conhecermos a reflexão dos cozinheiros sobre essa dialética dos sentidos, posta em jogo à mesa. Não só de defumações vive a imaginação humana. 


Itamar Assumpção e o perfume.

1 comentários:

Taís disse...

Esse texto ficou muito legal, Dória!

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