03/08/2014

A anti-comida e o holocausto do tempo livre

A reação dos contrários situa-se entre o nostálgico e o incrédulo. “Isso não contém todos os nutrientes”. Não é à toa que Michael Pollan  está ai, em cruzada pela comida e também contra o Soylent. “Acho que o mais interessante nessa história do Soylent é que ela revela uma certa arrogância diante da compreensão sobre comida. A ideia que sabemos o bastante para simular completamente a dieta humana… É de uma prepotência! Não sabemos. Soylent não é ciência complexa. O cara entrou no site do Ministério de Agricultura e montou essa lista de todos os nutrientes de que humanos precisam. Essa lista está atualizada? Sabemos realmente do que de fato precisamos? Acho que não. Só descobrimos agora que precisamos alimentar micróbios do nosso intestino grosso para sermos saudáveis. Porque eles representam 90% das células no nosso corpo. A maioria das dietas de nutrição não levam isso em conta – elas pensam apenas no corpo humano”.

Convenhamos que pensar na comida dos micróbios é um pouco além do que estamos acostumados. “O fato de o inventor da marca ter dado esse nome Soylent e ter vindo da indústria de tecnologia… Ele vem do Vale do Silício, e, hoje, achamos qualquer coisa que esses caras fazem interessante”, acrescenta Pollan.

Mas dizer que Soylent é uma moda passageira, e que não há novidade em dietas balanceadas, é dizer pouco. Vivemos o mundo da dieta: prescritas, de necessidade, de escolha, de precariedade - classificação proposta pelo antropólogo da alimentação, o barcelones Jesús Contreras.
Os inventores dessa gororoba com gosto de Metamucil, ou do troço que se toma para fazer colonoscopia, não inventaram a comida como obra da engenharia. Apenas inventaram algo prático, que se toma (?) enquanto se trabalha, como antes se comia barrinhas de cereais ou um frapé de chocolate e, dizem, mais nutritivo porque “completo”. Estar diante do computador talvez seja a chave para entender seu sucesso inicial, e sua origem no Vale do Silício. Afinal, era algo que faltava para tornar a vida virtual “mais completa”, uma instituição total, como se conclui da leitura do interessante artigo de Lizzie Widdicombe (Ilustríssima, 3/8/2014).



Se antes era necessário interromper o trabalho para almoçar, agora não é mais. “A comida era um fardo”, diz o inventor do Soylent referindo-se ao tempo perdido em prepara-la e comer. E ele mesmo teoriza sobre a separação que o Soylent permite, entre a alimentação e a “comida recreativa”. Afinal, se vamos a um restaurante arrastados pela fome e não pelo prazer da convivência, é mesmo um fardo que nos impõe, entre outras, abandonar a net - onde estão as coisas verdadeiramente interessantes. Domenico di Masi errou redondamente.

Outro aspecto do Soylent que merece atenção diz respeito ao gosto. Ninguém parece apreciar ou odiar seu sabor. Ele é mais uma gosma, uma textura, do que um sabor claro e definido. E pode ser “saporificado” com um pouco de chocolate ou o que se queira. Torna-se passável.

O “fim da comida” também corrobora o fato de que, talvez pelo excesso de gourmandise, “as pessoas esquecem a maioria das refeições que fazem”. Soylent desarticula essa cadeia que, começando à mesa, termina invariavelmente no instagram. Nesse sentido, é uma crítica radical aos penduricalhos do gosto. E é o contrário ao ethos do natural, do fresco, do orgânico, da felicidade ingerida em garfadas. É o fim do próprio garfo.

Em relação às dietas balanceadas dos atletas, o Soylent se destina a “pessoas que trabalham em escritórios ou cubículos e buscam eficiência, e não para homens que malham na academia”, diz Widdicombe. E está claro que a ideia de que a comida pode ser reduzida a um conjunto de químicos não representa qualquer inovação. Basta ler o saboroso livro de Waren Belasco (chamado O que iremos comer amanhã?, na tradução do Senac) para percorrer a longa história das utopias alimentares, conforme se apresentaram nas grandes feiras de alimentação, de final do século XIX em diante. A pílula dos astronautas é apenas uma entre dezenas delas. Outra seria uma dieta à base de algas ultra-nutritivas.

Soylent não assusta nem conforta. Mas ainda que seja uma “moda”, dá o que pensar. A chave está na sua inserção social. Afinal de contas por que se articula com o “tempo livre”, aparentemente abolindo-o da periferia da jornada de trabalho? Por que o prazer de cozinhar, ou de comer entre amigos, parece um fardo para as pessoas? Seriam estas sobrevivências arcaicas de um tempo que já se foi e que ainda não nos demos conta? A ficha caiu?

2 comentários:

André Nogal disse...

Olá! Seria possível me informar o seu email? É para que eu possa enviar uma msg mais longa sobre um assunto off topic. Abraço.

Roberto disse...

Ao invés de condenar o Soylent você nos convida a uma reflexão e a responder a assustadora pergunta final...agradeço por isso.

Postar um comentário