06/11/2015

O Slow Food mostra ao Eataly e ao mercado o seu limite de tolerância


Em consequência da discussão que aflorou nos últimos dias, o Slow Food Brasil publicou, ontem, uma nota explicativa a respeito de suas relações com o Eataly (reproduzo abaixo). Há jornalistas que, por sua vez, estão dispostos a investigar a fundo essa relação, inclusive na Itália; ou seja, apenas se destampou uma panela que veremos em maiores detalhes o que cozinha.

Está claro que o Slow Food se sente desconfortável na trama comercial em que se meteu; tanto é que diz, na nota: “Ao recebermos notícias que confirmam a persistência de situações de inadimplência, vimos a público esclarecer que o Slow Food Brasil desaprova tal conduta e que, nesses e em outros casos que envolvam ações no âmbito do movimento, estaremos dispostos a interceder, dialogar e pressionar para que a situação seja resolvida o mais breve possível”.



Pelas poucas pessoas que haviam me informado da crise, soube que Saint Marché e Eataly realizaram, ontem, vários pagamentos de débitos pendentes há vários meses. Não todos, mas vários, dando demonstração do propósito de “acertar” a situação.

Isso mostra, em primeiro lugar, a importância de se discutir publicamente esse tipo de problema; em segundo, como os jornalões dedicados à gastronomia estão pouco se lixando com a sorte dos pequenos produtores, a “sustentabilidade” do artesanato que tanto dizem apreciar, etc. Por fim, evidencia que é urgente que se discuta um estatuto especial para os artesãos e pequenos negócios se relacionarem com as grandes redes comerciais.

Não se pode esperar que artesãos tenham capital de giro suficiente para aguentar esses desaforos, financiando o grande capital comprador. Precisam prazos menores de pagamento - reivindicam 21 dias! - recebimento mais célere das mercadorias (um produtor de hortaliças não pode ficar um dia inteiro para descarregar seus produtos no cais do supermercado), etc.

O Slow Food Brasil, que demonstrou atitude digna, bem poderia liderar essa luta pelo tratamento especial dos pequenos produtores, afiliados ou não a ele, e fornecer ao público, sistematicamente, informações sofre essa frente de relações críticas com as redes de supermercado (sim, o problema não é só dos personagens hoje na berlinda).

Se o Eataly entendeu que deveria agregar um capital moral se aproximando do Slow Food, é bom que constate que isso tem, por outro lado, um preço a pagar. E o preço é esse estatuto especial de comercialização do artesanato alimentar.
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"Carta de Esclarecimento do relacionamento Slow Food Brasil e Eataly Brasil

Escrito por Glenn Makuta
Publicado: 05 Novembro 2015

O Slow Food é um movimento de ecogastronomia constituído de uma associação sem fins lucrativos fundada por Carlo Petrini, na Itália, em 1989. Está presente em mais de 150 países e chegou ao Brasil em 2000. Nasceu em contraposição ao fast-food e a fast-life, modo de vida da sociedade industrial, onde tudo é massivo e padronizado.

Defende o alimento bom, que é saboroso, fresco, de qualidade e capaz de estimular e satisfazer os sentidos; limpo, que não exije da natureza mais do que ela pode prover nem prejudique a saúde humana; e justo, respeitando a justiça social, pagamentos e relações justas para todos os envolvidos em toda cadeia de produção, distribuição, consumo e descarte de alimentos.

Acreditamos que, ao treinar nossos sentidos para compreender e apreciar o prazer que o alimento proporciona, também abrimos nossos olhos para o mundo. Atuamos principalmente em três eixos: defender a biodiversidade e cultura alimentares, difundir a educação do gosto e repensar o sistema alimentar a partir da aproximação dos produtores e co-produtores (como definimos os consumidores informados e empoderados). Isso é obtido por meio de iniciativas, eventos e projetos como Arca do Gosto, Terra Madre e Fortalezas. É reducionista e limitada a percepção que alguns atores da cena gastronômica ainda têm do movimento insistindo em vincular o movimento Slow Food à pessoa do seu fundador, Carlo Petrini, ou apenas à aspectos  hedonistas e secundários de uma rede complexa e horizontal de voluntários comprometidos com as causas do movimento.

A diversidade daqueles engajados no Slow Food é muito ampla: do cozinheiro ao ativista, do pesquisador ao agricultor familiar, das comunidades tradicionais aos empreendedores, de produtores a co-produtores alinhados com a filosofia do alimento bom, limpo e justo e interessados em fomentar uma alternativa ao sistema alimentar predominante. Todas essas partes formam a Rede Terra Madre, de alinhamento global e atuação local, adaptando-se às identidades e necessidades únicas de cada realidade.

No Brasil a rede se organiza por mais de 55 núcleos locais denominados ‘convívios’. É a partir deles que o potencial do movimento é concretizado. Temos ainda grupos de trabalho, campanhas internacionais e nacionais e outras articulações (como as de educação do gosto; de defesa do queijo artesanal de leite cru; contra os transgênicos; de promoção dos méis de abelhas nativas; pelo consumo do pescado sustentável; de participações em conselhos de segurança alimentar e nutricional) interagindo com organizações da sociedade civil, setores governamentais e também com a iniciativa privada. Isso nos dá uma visão panorâmica do contexto em que estamos inseridos, permitindo o fomento de cadeias curtas e sazonais, de relações justas e sustentáveis na distribuição e comercialização de produtos da sociobiodiversidade brasileira.

Foi nesse cenário, e inspirado no caso do Slow Food e Eataly italianos, que nos aproximamos da filial brasileira deste mercado. Pelo alinhamento deles com nossa filosofia, percebemos a oportunidade de alimentos de alta qualidade produzidos por cooperativas e pequenos produtores (geralmente de núcleo familiar) alcançar o mercado de forma justa. Além disso, exercemos curadoria de parte dos cursos oferecidos em suas dependências, seguindo a linha basal do movimento de educação alimentar para a sustentabilidade.

No entanto, temos recebido informações de nossa rede de que há ainda uma grande distância entre o discurso e a prática do Eataly, em São Paulo. Ao tomarmos conhecimento desta postura desalinhada com nossas propostas, abrimos o diálogo solicitando esclarecimentos e buscando soluções. Mantivemos o relacionamento enquanto o Eataly se ajustava às dificuldades administrativas que alegavam.

Ao recebermos notícias que confirmam a persistência de situações de inadimplência, vimos a público esclarecer que o Slow Food Brasil desaprova tal conduta e que, nesses e em outros casos que envolvam ações no âmbito do movimento, estaremos dispostos a interceder, dialogar e pressionar para que a situação seja resolvida o mais breve possível. Tal posicionamento não se limita a este caso. Vale para qualquer iniciativa que não se mostre justa com os produtores de comunidades do alimento vinculados ou não à nossa rede.

Informamos ainda que o Slow Food Brasil não foi nem pretende ser financiado pelo Eataly ou por qualquer outra empresa distribuidora de alimentos. Estabelecemos um diálogo ampliado em diversas esferas, seguindo as atuações e interesses de ambas as partes, e temos autonomia para rever esta parceria a qualquer momento. Contamos com a rede para nos manter informados e para continuarmos sendo uma força cada vez maior na luta por uma cadeia do alimento bom, limpo e justo".

2 comentários:

Ronald disse...

No universo dos "cretinos fundamentais" e dos oportunistas, qualquer bandeira politicamente correta hasteada, atrai um robusto contigente para defender algo presumidamente frágil. A Europa gastronômica de qualidade, estruturalmente, desde sempre, é "slow food". Enquanto projeto editorial o conceito é genial. Não fosse o Carlo Petrini, um brilhante editor. Com quem, aliás, eu e o Luciano Almendary em Outubro de 1994, sentamos à mesa na Osteria del'Arco em Alba, apresentados pelo Sr. Ricardo Bardini, da Agrimontana.

Pedroox disse...

Dória, como vai? Gostaria de falar com o sr. Sou repórter do Estado de Minas. É possível? Quais seus contatos?

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