24/10/2009

O que iremos comer amanhã?

Finalmente saiu o livro do historiador Warren Belasco que é uma “história do futuro da alimentação”, isto é, uma história das utopias alimentares e o que prometem como futuro em cada época. A capa ficou bem melhor do que a da edição norte-americana, e a edição brasileira também superou o cacoete comum de se suprimir índices remissivos nas traduções, como se fosse um luxo ou excesso. Este teve o seu mantido. A seguir trechos da apresentação que escrevi para a obra:

O livro do professor Warren Belasco, da Universidade de Maryland, constitui uma leitura fascinante para quantos, preocupados com a nutrição, a segurança alimentar ou a culinária, buscam dialogar com as estruturas de pensamento vivas e atuantes por trás daquilo que levamos à boca. O seu “ovo de Colombo” foi descobrir, como historiador, a estrutura recorrente dos discursos sobre o futuro da alimentação nos últimos 200 anos, desnudando algo que todos farejamos no ar sem conseguir nominar corretamente. Belasco nos aponta um verdadeiro dilema permeando as escolhas alimentares dos últimos séculos.

De fato, o odioso texto de Thomas Malthus – o seu "Um ensaio sobre o princípio da população na medida em que afeta o melhoramento futuro da sociedade, com notas sobre as especulações de Mr. Godwin, M. Condorcet e outros escritores" (1798) – ou o terrivelmente irônico texto de Jonathan Swift, sua “modesta proposição” para a erradicação da fome na Irlanda, de 1729, continuam a soar como alertas para os catastrofistas do presente que acreditam que, em algum momento da história, faltarão alimentos suficientes para uma população humana crescente. Em contraste, os otimistas incorrigíveis – entre os quais se alinham empresas como a Monsanto e quantos acreditam que a transgenia garantirá um futuro de abundância crescente de alimentos – apostam num futuro radiante e transformam essa fé em fonte dinâmica de acumulação de capital. Prensados entre os dois pólos estão os comuns dos mortais com suas idéias ingênuas sobre o futuro alimentar da humanidade. O que une a todos – catastrofistas, otimistas e cidadãos comuns – é o jogo sedutor da utopia, isto é, a construção mental de futuros ideais onde as profecias inevitavelmente se realizarão.

O que ele nos oferece, num capítulo específico sobre a centralidade da carne na dieta moderna, é uma reflexão que faz há mais de trinta anos. Este é o primeiro tópico do que chama de “batalha sobre o futuro da alimentação”, tal e qual se processa nos think tanks voltados para o tema.

Certamente é uma questão crucial em termos malthusianos e anti-malthusianos. A utilização das terras para pastagens, ou para produção de alimentos para rebanhos bovinos é, sob o ponto de vista de consumo energético, francamente desfavorável ao carnivorismo, pois são necessários 19,4 quilos de cereal para produzir um quilo de carne bovina. Esta mesma equação se dá, em menores proporções, na produção de frangos, porcos, carneiros, etc; afinal, a alimentação dos animais, além de produzir a carne, produz o seu processo de vida, como o seu crescimento, movimento, manutenção do calor do corpo, etc. O próprio Malthus apontava o colonialismo como expediente de exportação de excessos populacionais e de expansão dos pastos para produção de carne, cujo limite se situava nas fronteiras das civilizações hindu e chinesa, baseadas na agricultura irrigada do arroz. Assim, na base do próprio dilema malthusiano, estava a oposição carnivorismo-vegetarianismo que se solucionou, temporariamente, através da expansão das fronteiras do mundo ocidental.

Mas a solução encontrada no far-west ou nos pampas argentinos, e que hoje pressiona as fronteiras da Amazônia, não dirime o conflito entre os dois tipos de dieta, atualizando, no domínio da futorologia, o dilema civilizacional. O que Belasco mostra de maneira bastante instigante é como “comer carne” se tornou sinônimo de “civilizado” no Ocidente.

O mundo anglo-saxão que Belasco nos apresenta parece conformar uma lógica onde tudo o que é de comer se encaixa numa expectativa de futuro que, ou acena com a fome, ou com a abundância. Para os gastrônomos, é interessante como Belasco mostra a emergência de Brillat-Savarin no contexto de otimismo abundantista e anti-malthusiano da França – na “tarde ensolarada do otimismo burguês” que dura até meados do século XIX - em contraste com o que seria, a partir de 1870, a sobriedade do período vitoriano, onde comida e sexo em excesso prenunciavam a ruína da humanidade.

Pílulas alimentares, coisas sintéticas, derivados de plâncton, de fermentos, etc, são as formas fantasiosas que o alimento vai assumindo, ao longo do tempo, para driblar os temores que recobrem o futuro. No outro extremo, metáforas de vida pastoril, cenários bucólicos, alimentos “orgânicos” e sistemas “sustentáveis” aparecem como a solução mais palatável para os otimistas, desde que políticas de conteúdo igualitário sejam fomentadas. O interessante é que Belasco mostra que nenhum deles é fantasia inocente: mais do que fruto da criatividade livre, da especulação descomprometida, são coisas que perseguem, de maneira obsessiva, desbravar o futuro com maior segurança; além disso, são idéias que arrastam consigo interesses econômicos arraigados, além estratégias de investimento e de marketing capazes de tipificar uma época.

O livro mostra também o surgimento da preocupação pelo controle e regulamentação modernos de aditivos alimentares, seja para resolver o “problema do sabor”, seja para adicionar novos valores nutricionais reconhecidos como tal pelas donas de casa, pelos médicos e pela mídia. A busca de novos valores nutricionais resultou em modas como a do acréscimo de ginseng, Gikgo biloba ou guaraná do Brasil a uma série de alimentos, como essenciais da perspectiva de que estes pudessem apresentar - além do sabor, textura e nutrientes comuns - novas qualidades “funcionais” que os qualificassem como “modernos” ou “smarts”. E foi para atender a onda de interesse pelas “bebidas smart” que as importações norte-americanas de mangas, goiabas e papaias cresceram vertiginosamente em meados dos anos 1990.

No tocante aos hábitos envolvidos como a alimentação moderna e “técnica” do presente, o exemplo mais curioso que Belasco nos fornece é o nascimento da chamada “mistura psíquica para bolo” (expressão cunhada por Alvin Toffler), que requeria a adição (além da água) de um ovo à fórmula comprada pronta, a partir da descoberta dos comerciantes de batedeiras de bolo que as donas de casa desejavam ter alguma “participação ativa” no processo de bater o bolo.

Nessa análise do presente próximo também não escapa a Belasco como, por trás da idéia de culinária fusion, está o mesmo velho espírito imperialista do período vitoriano. Tampouco que a tendência atual de busca por alimentos saudáveis, étnicos e de conveniência talvez não responda por 22% de novos produtos, sendo o restante meras reformulações de produtos já existentes.

A sensação que a leitura do livro de Belasco nos dá é que, mesmo quando acreditamos exercer o nosso mais profundo “eu” à mesa ou diante das panelas, trata-se de uma ilusão tão bem construída que, de repente, tomamos consciência de que somos nós mesmos os mistificadores de nossa época.

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