13/11/2009

O feijão, antídoto do Zé-ninguém

Os brasileiros podem ser definidos como “comedores de feijão”, como há povos que se definem como “comedores de formigas”.

A nossa identidade culinária está no arroz com feijão. Tirante a neutralidade do arroz, fica o feijão. Mas identidade é coisa que não precisamos discutir entre nós, já que a partilhamos silenciosamente. Discute-se com os outros, que não sabem quem somos.

O feijão é uma bússola social para nós. Achamos que somos brasileiros quando comemos feijoada de feijão preto [há a variante pernambucana, de feijão roxinho e legumes- foto abaixo]. Brasileiros exilados, patriotas, imploravam por latas de feijoada.

O preto traz a memória da escravidão negra, mesmo que a feijoada não tenha sido a comida de escravos (esse mito foi forjado pelos modernistas dos anos 1920). A “feijoada completa”, da qual Câmara Cascudo não encontrou indícios antes do final do século 19, parece que se difundiu no Rio de Janeiro, a partir das pensões familiares. Os cariocas comem feijão preto, assim como os gaúchos. Nos demais estados, nem tanto. Em São Paulo, só em feijoada. Para sermos nacionais assumimos o feijão da antiga capital do país.

Pelo Brasil afora, comemos centenas de variedades de feijões, e reunimos sob essa mesma palavra quatro espécies de vegetais comestíveis: a espécie Phaseolus vulgaris, ou feijão comum, cultivado em todo o território; os “feijões de corda” da espécie Vigna unguiculata; o “feijão-guandu” ou “andu”, da espécie Cajanus cajan, principalmente em sua variedade arbórea; além da espécie chamada “fava” (Vicia faba). Há várias espécies forrageiras animais e outras, utilizadas como adubos para cafezais - muitas nocivas à saúde humana - de tal sorte que as coisas reunidas sob esta classe são as mais diversas, seja de um ponto de vista estritamente botânico, seja da utilidade.

Comemos domesticamente, em média, 12,8 quilos de feijão seco por ano. Os mais pobres comem 14,9 quilos; os mais ricos, 11,3 quilos. O feijão rajado é o mais consumido, com média de 5 quilos. Em segundo lugar vem o fradinho, com média de 1,5 quilo. Dele se faz o acarajé.

As centenas de variedades estão espalhadas por todo o país. Em cada região temos os mais típicos. No Rio Grande do Sul, acha-se nos mercados e feiras o mouro, o cavalo, o amendoim, além do fradinho. Em Belém, no Ver-o-peso, além do rajado e do fradinho, se encontra o “manteiguinha de Santarém” e o “vermelhinho da colônia”.

Não há mercadinho ou supermercado no país que não tenha, no mínimo, quatro a cinco variedades de maior uso regional. Na medida em que avança a urbanização e a “supermercadização” do comércio de alimentos, as variedades vão se tornando mais uniformes – e o Slow Food sai por ai catando feijões em via de desaparecimento. Em São Paulo, em 1929, levantamento da Secretaria da Agricultura contava 67 variedades. Hoje a Embrapa desenvolve novas raças, pensando no seu teor nutritivo.

As variedades são estimadas regionalmente, e não nacionalmente; com exceção do feijão preto. Pelo tipo de feijão consumido, podemos saber o lugar onde estamos.

O que mais conta é como preparamos o feijão. As receitas derivadas de feijão, com alguma representatividade, são pouquíssimas: o tutu, o virado, o baião-de-dois, o acarajé, a dobradinha, o feijão em caldo. O Dona Benta de 40 anos atrás dava meia dúzia de receitas, todas estrangeiras.

Não precisamos que nos digam como fazer o feijão. Todo mundo sabe. É até ofensivo sugerir que se coloque louro quando gostamos de couro de porco e vice-versa. O feijão “gordo” ou “magro”, com caldo grosso ou fino; coentro, salsinha, cebolinha, cominho, alho, depende de cada um. Ele, é claro, aceita tudo: como a conjugação do verbo ser, ele sempre é.

Mas todo feijão é bom? Claro que não. O meu tempero é melhor que o seu e assim por diante. Cada família tem o seu hábito de temperar feijão e este será o melhor do mundo – assim como o guefilte fish judaico; cada mãe faz o melhor, e o conjunto é igual à infinita variedade de mães.

O caseiro de um sítio que eu freqüentava apresentou-me, num final de semana, sua nova companheira. Na semana seguinte, a mulher já não estava lá. Perguntei o que havia ocorrido e ele me explicou: “Ah, o senhor não faz idéia de como era ruim o tempero do feijão dela! Não tinha condição!!”. Ouvi várias críticas ao Dalva & Dito recém-inaugurado: a maioria se dirigia a essa coisa multifacetada que é o “tempero do feijão”.

Por que nunca transacionamos com o tempero do feijão? Porque é ele que dá a identidade da cozinha doméstica à qual estamos filiados; mudou o tempero, esfacelou-se nossa identidade familiar-gustaviva.

Assim é o feijão, a bússola social. Nos dá a coordenada do país (feijoada), da região (as variedades locais) e da casa a que pertencemos (o tempero). Sem ele somos meros cidadãos do mundo, ou seja, o Zé-ninguém gastronômico; carregamos o desgosto na boca.

1 comentários:

Barci disse...

Otima matéria, não como feijão mas é um alimento muito impoortante na culinária mundial e não é só o Brasileiro que come. Ele é base da comdia mexicana também e todo povo tem algum prato de algum feijão.

Dona Benta ? É o livro que deve servir de modelo da baixa gastronomia da suposta "comida caseira" que na verdade é a comida feita sem nehum cuidado encontrada por restaurantes de ultima categoria.

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