24/03/2010

O cozido do amor, segundo Hervé This

Acaba de sair Cozinha:uma questão de amor, arte e técnica (Senac-Sp, 2010) tradução de La cuisine: c´est de l´amour, de l´art, de la tecnique (2006) de Hervé This, com colaboração de Pierre Gagnaire.

Abaixo trechos selecionados da apresentação que escrevi para a edição brasileira:

Em 2007, quando esteve entre nós para o lançamento da série “A Ciência na Cozinha”, da Scientific American – Brasil, dedicada aos seus escritos, Hervé This me disse que estava se aplicando a estudar não apenas a química, mas os aspectos sociais da refeição, especialmente os aspectos subjetivos, como o amor.
Essa é uma tendência atualíssima. Como disse em recente entrevista Andoni Luis Aduriz, “me interessa a parte lúdica de fato gastronômico e, além das qualidades organolépticas dos produtos, me importa cada vez mais a categoria simbólica e cultural do que levamos à boca”.
Nesse quadro, é difícil dizer se Hervé This tem influenciado de forma decisiva as novas gerações de chefs, impondo-lhes uma pauta de preocupações cinetíficas, ou, ao contrário, se dedica àquilo que os preocupa, procurando fornecer respostas professorais às dúvidas correntes. O fato é que ele acaba de anunciar (junho de 2009), no seu artigo mensal para a revista La Cuisine Collective, o fim dos seminários de gastronomia molecular no INRA francês. Em seu lugar teremos, doravante, o “Grupo de estudo das précisions culinárias”.
Ora, a guinada anunciada por este conjunto de evidências é útil para os brasileiros, especialmente estudantes de gastronomia, que já não possuem certezas sobre a “identidade culinária” nacional, sobre o peso da cultura no seu desenvolvimento futuro vis a vis as necessidades práticas de modernização técnica.
Tudo parece claro agora, diante das últimas definições do trabalho da gastronomia molecular; mas como eu havia me debruçado sobre os textos de This visando a divulgação da física e da química através de aplicações culinárias, preparando a publicação da série “A Ciência na Cozinha”, confesso que, à época, não entendi bem aquela novidade que ele me contou. Uma “novidade” que era fruto da minha desatualização, pois já havia alguma coisa nova no ar, visto que nas conferencias que deu aqui explicou que o programa da gastronomia molecular havia mudado já em 2005, concentrando-se em estudar as “précisions” ou dicas culinárias, e explorando os componentes artísticos e amorosos do cozinhar. Mas para nós, que não acompanhamos em detalhe esta evolução dos últimos quatro anos, o presente livro é uma oportunidade de aggiornamento.
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podemos nos perguntar: qual seria o móvel da estética culinária, ou da “arte” que Hervé This persegue neste livro instigante? A resposta é simples: trata-se do desejo de agradar nas relações conviviais. Cozinhamos da melhor maneira que conseguimos para agradar os outros. Se isso é verdade, cabe a pergunta: por que, em vez de estarmos sós, preferimos comer em companhia de outros? E Hervé responde: “Porque a espécie humana, à semelhança dos outros primatas não humanos, é gregária: vivemos em cidades porque, biologicamente, somos programados para viver em grupo. E encontramo-nos para comer porque esse foi o comportamento selecionado no termo de milhões de anos de evolução. Ao comermos juntos, sentimos prazer já que nosso cérebro nos dá prazer ao procedermos desse modo: no decorrer das gerações, estabeleceram-se lentamente circuitos cerebrais que conduzem ao sentimento de “prazer” quando as circunstâncias nos colocam em volta de uma mesa. Melhor ainda, procuramos organizar nossa vida para termos a oportunidade de nos encontrar em volta de uma mesa” . Sendo muito forte esta recompensa social, acabamos por comer, inclusive, o que nos desagrada, se este for o preço de nos integrarmos ao grupo; por exemplo, ao beber e ao fumar, sobrepõe-se a recompensa biológica de fazer parte do grupo à punição gustativa de beber álcool e de fumar quando não se aprecia o amargo da cerveja e o ácido do cigarro.
Ainda que de modo não explicito, esta argumentação alinha-se à moderna revisão da chamada “segunda revolução” darwiniana, isto é, à reavaliação do alcance e importância de A descendência do homem e a seleção sexual (1871). Neste livro, que pouca gente leu no seu primeiro século de existência, Charles Darwin desenvolve uma antropologia original, baseada na idéia de que os instintos sociais, na fase da “civilização”, acabam por selecionar as práticas sociais que favorecem a solidariedade do grupo. Este altruísmo, de caráter anti-selecionista (pois protege os fracos, em vez de eliminá-los como seria da lógica da seleção natural), impõe-se como “seleção da seleção” ou, como dizem analistas modernos, como o “efeito reversivo da evolução” através da seleção natural dos instintos sociais .
Ora, o sacrifício dos indivíduos em prol do grupo é um traço distintivo da evolução, especialmente útil quando esta se torna “humana”, isto é, quando o instinto social passa a construir a civilização. Dessa regra, Hervé This parece derivar o seguinte raciocínio: “ao servir a alguém um prato que é manifestamente de sua cultura, você fornecer-lhe-á uma recompensa biológica, confirmando o pertencimento à sua cultura. Tal procedimento suscita a questão da inovação culinária: de que modo inovar, na cozinha, quando a evolução parece nos condenar a manter a tradição?” Por outro lado, “ao servir-se de um prato elaborado por um artista da cozinha, o comensal recebe uma recompensa biológica ao compreender o sentido dessa criação culinária porque ele está no mesmo comprimento de onda”... e “ir ao restaurante corresponde a integrar-se ao grupo dos amigos, incluindo um cozinheiro” . Assim, temos que o desejo de agradar se dá por uma razão amorosa, altruísta, ao passo que a força integradora do grupo pode impor ao indivíduo o “desejo de agradar ao grupo” contrariando suas próprias preferências. É essa dialética, ou sua dimensão ética, que tece o sentido do amor na cozinha.
E para se abrir caminho em direção à “arte”, isto é, à inovação e criação, This entende que também é preciso superar certas crenças e ideologias modernas. “Por que motivo a cozinha teria de se contentar em servir, sem uma preparação esmerada, os ‘produtos’ da agricultura, da criação de animais ou da pesca? Designemos tais produtos por ‘ingredientes’ e procuremos entender melhor que a cozinha não é a atividade que se resume a proceder a uma escolha criteriosa no açougue, na peixaria ou no verdurão”. Com isso ele quer dizer que, ao contrário dos discursos “naturebas”, a natureza não traz em si um sentido ético: “a natureza não é boa, nem ruim [...]. A espécie humana não deixou de procurar os recursos para se proteger contra o entorno natural”.
Em termos concretos, não há que “respeitar o produto”, conforme é tão corrente na boca dos chefs da atualidade. Este discurso, inspirado pela ideologia hippie dos anos 1970, expresso com tanta clareza nos escritos de Paul Bocuse, é uma falácia inclusive do ponto de vista da saúde. Sabemos, por exemplo, o quanto é tóxica a noz moscada, graças à concentração de trimisticina. “Seria preferível que [o cozinheiro] respeite seus comensais e não tanto os produtos”.
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Mas a questão da natureza, em culinária, não diz respeito apenas aos caracteres naturais das coisas alimentares. Também diz respeito à sua representação. Ela pode ser reproduzida, imaginada, evocada, imitada em vários domínios da arte e, em culinária, essa separação, entre a contingência da materialidade pura e imediata das coisas de comer e a sua representação, realizou um grande salto no século XVIII com a descoberta dos processos racionais de preservação de alimentos de modo a “fixar” as estações. A partir de então, pode-se ver de outra maneira a forma como alguns cozinheiros, mesmo os da vanguarda, “sentem uma espécie de dever de harmonizar sua cozinha à estação”. Em outras palavras, embora para a “ideologia verde” a cozinha esteja jungida à natureza, impondo o aproveitamento dos produtos sazonais, as tradições estéticas que reivindicam um lugar acima da matéria nos diriam que o principal é representar a natureza. Fazer parecer primavera onde não há primavera, por exemplo.
Desbastadas as arestas que vinculam a criatividade à natureza e dificultam o andar da arte culinária, Hervé se fixa na questão do estilo como porta de entrada para o assunto. Seguindo o historiador Meyer Schapiro ele registra: “Por estilo, entende-se a forma constante – e, às vezes, a constância dos elementos, das qualidades e da expressão – na arte de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos.” E, em seguida: “A descrição de um estilo faz referência, em geral, a três aspectos da arte: os elementos formais ou motivos; as relações formais; e as qualidades (incluindo uma qualidade global que pode ser designada como ‘expressão’).” Assim, “o estudo estilístico constitui, muitas vezes, uma busca de correspondências ocultas, explicado com a ajuda de um princípio organizador que determina o caráter das partes e, ao mesmo tempo, a disposição do conjunto.”
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Hervé percorre várias discussões e definições de arte e estilos em pintores, filósofos e poetas dos séculos XIX e XX e seria enfadonho segui-lo aqui, diminuindo o prazer da leitura que se seguirá. No entanto, vale registrar a sua preferência pela arte abstrata, que escapa ao figurativo, como arquétipo da moderna arte culinária. Ele nos recorda Paul Klee ao dizer que “a arte deve revelar, de modo que o invisível se torne visível”, e nos remete a Gropius quando este diz que não há diferença entre o artista e o artesão na medida em que “ao lado de uma formação técnica e artesanal, o criador deve aprender, também, com a linguagem das formas para ter a possibilidade de exprimir visualmente suas idéias”. Mas Gropius também procura diminuir a distância entre artista e artesão através do aprendizado científico ao qual devem se entregar. Em cozinha, conviria que os cozinheiros recebessem conhecimentos científicos a respeito das impressões gustativas; neste ponto da argumentação, This está abandonando a dicotomina artesanato/arte que explorou no início do livro.
Mas teria cabimento falar em cozinha abstrata, isto é, utilizar os ingredientes para criar gostos que não correspondam aos dos próprios produtos, na contramão das idéias clássicas de Curnonsky? “Para o cozinheiro inspirado na arte abstrata, o frango pode limitar-se a ser uma textura... com o gosto de ostra, desde que esteja em jogo a vontade de elaborar algo de belo. Esta idéia justifica-se perfeitamente: por que haveríamos de nos limitar a dar o gosto de frango... ao frango? Trata-se de um a priori sem qualquer justificativa”, diz Hervé.
Ora, na medida em que o abstrato revela a “natureza interior” (Kandinsky) ele joga luz no íntimo do ser humano e, na cozinha, verifica-se algo equivalente. A busca do novo, que nos liberta da neofobia alimentar dos primatas, que dispõe composições maravilhosas e desconhecidas, materializa aquelas reelaborações que se passam no âmago de cada um, condensando, ao mesmo tempo, os procedimentos normais e imaginários. Ao dispor esse íntimo para o outro estaríamos, com toda certeza, no terreno do amor.

1 comentários:

Breno Raigorodsky disse...

Obrigado pela postagem de trechos da apresentação do livro do cientista. Sua reflexão, embasada num conjunto bibliográfico de respeito, lidera esta tendência que chega a nós com alguma força.

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