04/03/2010

O luxo em gastronomia

A seguir transcrevo excertos do meu artigo, surgido em O Globo de 27 de fevereiro, sobre as “metamorfoses do luxo culinário”:


Em 1920 dois irmãos armênios, que estudavam medicina em Paris, fundaram a casa Petrossian, especializada em “caviar e produtos de exceção”. O caviar era conhecido desde os fenícios, mas seu boom deveu-se aos aristocratas russos fugidos da Revolução de 1917 para Paris. Hoje, um quilo de caviar beluga royal pode custar € 12.800 e, graças à sensação que ele desaparecerá da Terra, a casa Petrossian já trabalha na nobilitação de outros produtos. A certeza é que o luxo alimentar sempre se renova e os ricos não irão morrer na penúria gastronômica.

Na explicação do luxo, considera-se o raro, o caro e o exclusivo como seus traços distintivos; enfim, aquilo que não está ao alcance de todos, a “exceção”. Mas a globalização projetou a indústria mundial do luxo cuja expressão mais notável é o conglomerado Moët Hennessy Louis Vuitton, devotado às novas elites do mundo todo.

Outro efeito da globalização foi a desestruturação da produção seriada (dita “fordista”), de sorte que a feição de “artesanato” tornou-se a forma ideal de produção do luxo. Mesmo quando grandes conglomerados financeiros avançaram nesse terreno, comprando pequenas marcas da periferia como as vinícolas argentinas, cuidaram para não destruir o apelo “artesanal”.

Em seguida, surgiram legislações agro-alimentares que favoreceram o artesanato e os “sabores locais” com “história” e um fenômeno curioso se expandiu pelo mundo: o fracionamento e multiplicação das mercadorias que pareciam unidades inquebrantáveis.

Os azeites, por exemplo, se multiplicaram e quem os conheceu por procedência (espanhol, português, grego, italiano) viu chegarem ao mercado os derivados de diferentes variedades de azeitonas, tipos de cultivo (“orgânico”, etc) e localidades de origem. O singular ficou cheio de meandros.

Se antes o mercado hierarquizava os produtos por preço, hoje se vê o desenvolvimento de novas estratégias para que mercadoria e consumidor se encontrem como se fossem feitos “um para o outro”. Mas é preciso notar que o consumidor também mudou.

Com o fim do ajuntamento das grandes fábricas, chegou-se ao fim da “classe social” que contrapunha o coletivo de trabalhadores aos múltiplos capitalistas. Um novo individualismo se disseminou pela sociedade, desqualificando o espaço público. Em meio a tantas novas mediações temos que, domesticamente, a cozinha se transformou no lugar de um novo saber e convivência, como a antiga biblioteca; o espaço que particulariza o sujeito e o habilita para um novo mundo. A própria arquitetura se curvou a isso.

Trazer para esse espaço produtos diferenciados e diferenciadores passou a depender mais da qualidade que do preço. Pesquisas de opinião realizadas na França em 2000 indicavam que o “gosto” ocupava o primeiro lugar nas decisões de compras para 79% dos franceses. A mídia espelhou essa mudança. A alimentação invadiu os programas de TV; o chef se tornou uma espécie de sacerdote moderno; multiplicaram-se as associações de consumidores e produtores com foco no alimento; mais e mais restaurantes se aninham sob a aura da inovação e criação; e - mais importante - o sujeito que não mergulhava nessa nova onda alimentar era visto com alguém “tosco”.

De repente, o requinte alimentar passou a ter um sentido ético inédito: discriminar o bom e o belo em meio ao excesso e à banalidade. À ideologia da “economia calórica” se aproximou da mesa plena do que realmente “vale a pena” – sendo a “pena” a eterna condenação à “malhação”. Essa nova cultura opera sob a tensão permanente da inclusão/exclusão que depende, de um lado, da constante renovação do mundo das mercadorias comestíveis; de outro, do desenvolvimento da linguagem através da qual estas falam ao consumidor.

Dois são os fundamentos dessa nova prática social: o desenvolvimento do marketing e da degustação. O primeiro sofisticou-se a ponto de superar em muito o custo “material” dos produtos, rastreando-o do agro até a gôndola; a segunda abandonou as certezas dos velhos terroirs franceses e foi atrás de novos nos quatro cantos do mundo.

O “sentido de lugar”, além do sabor do fenótipo das espécies comestíveis, são buscados em cada degustação. O café, uma commodity que custa cerca de R$ 400 a saca de 60 quilos, pode atingir R$ 15 mil, se proveniente desses micro-lugares de sabores especiais que o fazem amenity.

Sequer os restaurantes escapam dessa lógica, e a “cozinha de autor” se tornou uma espécie de “território de exceção”, onde o que se faz é tão singular quanto os produtos da natureza: neles, temos “o gênio” como coisa a consumir.

Ferran Adrià percebeu isso e fez do seu taller o coração do El Bulli. Ali ele “imita” a natureza; a marca da sua cozinha é a “desnaturação”, como o “caviar de melão”. E ele não se repete: a experiência gastronômica traz a promessa de ser única, quando, antes, era recorrente. É a quintessência do luxo, e custa bem menos do que os francesões da velha escola, cuja marca é se repetirem ad nausea em meio ao caviar, foie gras e tantas outras coisas dos velhos terroirs.

O luxo mudou de lugar na sociedade. Deixou de ser a exceção dos ricos para ser a experiência singular das classes médias ascendentes em busca de exclusividades construídas segundo uma nova lógica estética, moral e de mercado.

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