09/09/2010

Tristeza amazônica

Morreu hoje o querido amigo Paulo Martins, em Belém, após longa enfermidade. Recordo dias agradáveis que passamos em Belém e em Madrid. Homem de grande vitalidade e tesão pelo que fazia, o mundo da gastronomia sofre grande baixa.

Dediquei a ele meu livro A formação da culinária brasileira lembrando ter sido o verdadeiro embaixador da Amazônia mundo afora. Escrevi também um artigo na Trópico - A riqueza sem preço de Belém - cujo trecho reproduzo aqui em sua homenagem e evocação:

Se fosse possível definir em poucas palavras a cozinha paraense, teríamos que nos entregar às metáforas aquáticas. As coisas saem da água, do brejo, da beira-rio, para mergulhar em alguma espécie de caldo saboroso ao qual em geral se acrescenta, como “terra firme”, um tanto de farinha de mandioca.

A culinária gira em torno do rio e dos caldos; como a cidade de Belém, em cujo horizonte sempre se vê uma nesga do Guamá. É uma cozinha palafitada, onde nem se quer os limites entre o rio e o mar são muito claros, conforme mostrou o recente episódio de uma baleia que foi encontrar o seu fim mais de 100 km longe do mar; como a deliciosa pescada amarela que, sendo um peixe comum a todo o litoral brasileiro, só encontra um sabor excepcional em Belém, talvez graças à água doce na qual transita e se alimenta antes de mergulhar nas panelas.

Um panorama vivo dessa cozinha é dado por uma visita ao Mercado Ver-o-peso. Mesmo sucessivas reformas não foram capazes de descaracterizá-lo, como aconteceu ao Mercado Municipal de São Paulo ou, mais remotamente, ao Mercado Modelo de Salvador, onde sequer deixaram frutas e legumes como décor...

A onda de “refuncionalização” dos mercados parece ter preservado poucos destes no mundo. O Boqueria, em Barcelona; o Ver-o-peso, em Belém, são exemplos que escaparam com vida. A “refuncionalização” dos Armazéns das Docas do porto de Belém, bem ao lado do mercado, salvou-o, e pode-se dizer que a sua última reforma até o melhorou, em termos de higiene. Uma sorte danada.


Frutas in natura e em polpa, farinhas em enorme variedade, peixes, ervas, mezinhas, galinhas caipiras em pé, para abate; alguns exemplares de orquídeas amazônicas; quase tudo alheio ao turista, mostrando que o impulso dessa economia quase nada deve aos de fora - em geral alemães, americanos e franceses, mais do que brasileiros. É uma realidade tão pouco óbvia que, em geral, exige um intérprete. Como Paulo Martins.

Com a aparência física que beira a de um guru indiano, Paulo Martins é um pioneiro. Há mais de 20 anos sua família possui o restaurante “Lá em Casa”, agora definitivamente sob sua direção após a morte recente de sua mãe, Anna Maria. Em meio ao caos que é a “cozinha paraense”, esse restaurante se dedica a fixar um menu que possa ser reconhecido como “regional” não só pelos guias de turismo mas em qualquer parte do mundo.

Fazer uma ementa é essencialmente discriminar, incluir e excluir, firmando a visão do todo. Maniçoba, feijão manteiguinha de Santarém, várias farofas aproveitando a enorme diversidade de farinhas de mandioca, caldeiradas, tucupi, pato; peixes como o filhote, a pescada amarela, o tambaqui, o pirarucu e o tucunaré; o jambu com sua sensação “elétrica” na boca; frutas como o bacuri e a taperebá -tudo isso expressa opções que deixam de lado coisas igualmente interessantes para o investigador gastronômico mas que, no conjunto, apresentam o risco de desenraizar por completo o turista, atirando-o num abismo sem fundo.

Paulo busca criar um solo firme para a culinária local, eis o seu pioneirismo. Também por isso pagou do próprio bolso estudos que permitiram a descrição e tipificação do tucupi, em fase de registro oficial. Ele pretende criar o tucupi “DOC” e exportá-lo, ganhando o mundo com esse produto que, hoje, só aparece na alta gastronomia através de pratos elaborados por Alex Atala, em São Paulo, ou em ensaios dos modernos espanhóis.

A viagem gastronômica de Adrià




Paulo Martins está por trás de muita coisa que Alex Atala faz. Por isso, 2008 promete ser um ano decisivo, estratégico. Ferran Adrià deverá vir ao Brasil e, dentre suas exigências, figura uma estada com Paulo Martins em breve viagem de exploração gastronômica pelo rio Amazonas. O Brasil, desde 1500, se descobre de fora para dentro. Mas parece que isso já começou, e Paulo Martins, que cultiva velha relação com Adrià, sabe disso muito bem.

Fica-se sabendo, à boca pequena, que o “aerolula” já fez “escala técnica” em Belém só para recolher umas porções de picadinho de peixe de Paulo Martins para recepção oficial. Paulo Martins não confirma nem desmente. Prefere lembrar que, em breve, irá fazer um dos seus jantares em Beirute, e que já recusou fazer o mesmo nos Estados Unidos, pois não se dispõe a ir a Brasília fazer entrevista na embaixada americana para obter o necessário visto. “Se eles me convidam, deviam saber se eu posso ou não entrar nos Estados Unidos, não é?” Tem sua lógica.


Já doente, Paulo não pode fazer a viagem que tanto esperou com Adrià. Mas Adrià esteve em sua casa, reconhecendo pelo gesto a importância de Paulo Martins para a moderna gastronomia mundial.Um homem que fez história sempre estará entre nós.

4 comentários:

Júnior disse...

Sou recém chegado ao mundo gastronômico, mas o chef Paulo Martins tem importância para todo cidadão brasileiro que valoriza a cultura nacional. E você, Dória, como não podia deixar de ser, sensibiliza com palavras, essa homenagem notoriamente sincera ao cozinheiro do Brasil.

Constance Escobar disse...

Grande perda. Bela homenagem.
A esperança é que a filha de Paulo possa dar continuidade a esse trabalho, como ele fez com o trabalho se sua mãe... O tempo dirá.

Profª Doralice Araújo disse...

É reconfortante para qualquer pessoa ser alvo do reconhecimento e carinho; o Paulo foi com as suas receitas e modos de preparo aumentando o rol de amigos e cada um, a seu modo, foi um divulgador da cozinha parauara.

Ficou entre nós e continuará encantado a cada colherada da deliciosa "Silveirinha de Camarão" que eu, você, Doria, ou outro apreciador da cozinha que se reinventou na simplicidade, na gostosura e, sobretudo, no fazer bem feito com os produtos da terra e do rio.

A despedida é sempre triste, mas a lembrança que fica é espetacular; merece ser compartilhada, do jeitinho como você fez acima.

Anacreon de Téos disse...

Ele já vinha fazendo falta, afastado pela cruel doença que nos privou de seu convívio nesses últimos dois anos.
Fiz uma homenagem a ele no blog, repassando algumas receitas que nos ensinou quando esteve aqui por Curitiba. Singela, mas sincera e sentida. Está aqui: http://bit.ly/cD8neF, que foi de onde veio a foto que ilustra esse teu belo texto, que nos emocionou a todos.

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