17/11/2010

Como será construída a “nova culinária brasileira”? – IV

Nessa altura do campeonato, qualquer feitio do “nacional” será, necessariamente, misto. O macarrão, por exemplo, faz parte da nossa dieta, e não será qualquer favor observar como ele é trabalhado em cada parcela do país.

Há também a questão do “tempo”, que dá concretude à “diversidade”. São Paulo, que parece um “receptor universal” em matéria de ingredientes culinários, também já teve um repertório distinto. A beldroega (Portulaca oleracea ) ou salada-de-negro – talvez originária da China - era uma folha da qual se fazia deliciosa salada, no interior de São Paulo, há mais de 3 décadas; assim como a azedinha (Rumex acetosa) e, do estado vizinho de Minas, a ora-pro-nobis (Pereskia aculeata) que vive momento de revalorização .

Os peixes de rio tinham presença grande na dieta paulista. Eram admiráveis também as frutas, que já não existem, como a jabuticaba silvestre, o cambucá, o jambo de cheiro, e até o marmelo. E havia em profusão – como ainda há hoje – a pitanga.
No entanto, por que não se comercializa a delicada pitanga, preferindo-se dar tratamento adequado às berries importadas, igualmente delicadas? Tudo é questão de escolha gastronômica, de facilidade de tratar gastronomicamente o que é conhecido do grande público; seja diretamente, seja através dos meios de comunicação que espelham com muita freqüência as modas estrangeiras.

A “nova culinária brasileira” não precisará nacionalizar ingredientes, mas precisa reconhecer que, à volta, há sempre inúmeras possibilidades de exploração. Nem sequer é necessário recorrer à Amazônia, como parece ter se tornado um forte impulso entre chefs. Há muita coisa digna de nota, que não a iquiriba, a priprioca, a pimenta de macaco, o cumaru, o puxuri e assim por diante.

Um exemplo notável de bom caminho é o trabalho de Roberta Sudbrack. Ela se debruça atualmente sobre um dos componentes mais universais da nossa culinária, a fruta mais popular do país: a banana. Cerca de 20% das frutas que brasileiro come são variedades de bananas. E ela fez pesquisa semelhante em relação ao quiabo e ao chuchu (que, juntos, correspondem a 50% das hortaliças consumidas no país). Parece um trabalho “minimalista”, mas é maximalista.

Esse caráter popular do ingrediente é mais fundamental do que a sua natureza autóctone, e se uma centena de chefs elegesse cada um o seu ingrediente anual – “nacional” ou não, pouco importa - em uma década teríamos uma culinária inteiramente nova. Ingredientes como o caju, ou o pequi, esperam ansiosamente seus “redescobridores”. Tanto quanto o queijo Canastra, confinado ao seu território por imposição legal absurda.

Às vezes, nem sequer se trata de eleger um ingrediente; basta revisitar uma técnica. Dou como exemplo o babá à cachaça com baba de moça, do restaurante Dalva & Dito. O modo como é feita a baba de moça reinscreve o doce na culinária moderna, desbastado do excesso histórico de açúcar, conferindo-lhe nova vida. É o que Roberta Sudbrack chama de responsabilidade do cozinheiro profissional; de “fazer uma ponte entre os tempos”: dar nova vida ao que morria por um simples detalhe constitutivo que já não corresponde aos tempos novos. É a salvação daquilo que, de outra maneira, seria atirado ao esquecimento.

(Conclui no próximo post)

1 comentários:

Claudia disse...

Essa atualização de que você fala é fundamental, foi feita ou está sendo feita nas principais culinárias do mundo, inclusive aqui neste nortinho do planeta. Sem dúvida o esforço de Sudbrack e Atala de passar a limpo as tradições é valioso, já não é mais possível achar que se aprende a fazer revolução culinária em NY enquanto os saberes e fazeres brasileiros se perdiam. Eu acho que no Brasil o papel da tradição é muito mais do que o tal streetwear que você sugere.

Mas temos alguns trunfos, não funcionamos com o mesmo calendário restrito dos países do hemisfério norte/desenvolvidos, não estamos a mercê de uma meia-dúzia de produtos locais, ainda não homologamos com sucesso nem um-centésimo do nosso potencial cultural-culinário. Nossa fome é social e não natural.

O Brasil, apesar de sua parte miserável e subnutrida, é um país de fartura e de variedade natural e cultural gigantesca. Se o desafio de inventariar o que é conhecido é homérico, aquilo que permanece desconhecido e precisa ser descoberto e registrado parece esforço quase sobrehumano.

Investir em biólogos e agrônomos também é parte importante para uma culinária nacional, a indústria de sementes e de alimentos processados investe pesado em destruir tradições e lançar suas próprias no lugar, com o crescimento do país são a grande ameaça a nossa diversidade culinária. A preguiça e a burrice jogam para o time da comida processada, infelizmente. Por incrível que pareça, a fome e a escassez jogam no time da preservação de tradições. E a indústria de alimentos representa o cerceamento do acesso dos pequenos agricultores as sementes caboclas/nativas/indígenas, representam o patenteamento de sementes industriais que mata o alimento e qualquer possibilidade de culinária. Espero que você fale mais sobre isso.

As escolas de chefes deveriam brigar para oferecer bolsas e mais bolsas para formar biólogos.

E enquanto isso em Ipanema e nos Jardins a madame come frutinha importada. O que mais me entristece é assistir a elite assanhada pagar caro para comer bagos importados congelados que viu nas revistas importadas ou nos programas de tv, enquanto desconhecem totalmente o que cresce no próprio quintal. As camapus são exemplo disso, fruta nativa que dá em todo canto mas que era desconhecida da elite que não vai ao quintal, até que madame foi seduzida pela physalis importada.

Já viu madame cuidar de jardim? Madame tem jardineiro, cozinheira e motorista para carregar as compras e gosta de paga caro pela cereja do mato importada...

Como a elite brasileira é burra, "americanizada", ou "afrancesada", eles acabam naturalmente reproduzindo as tendências internacionais das quais são escravos e começarão em breve a apreciar o produto local, fazendo charminho de conscientes, já que são espelhos das modinhas internacionais.

Na minha opinião o bicho do localismo é feio, não que o Brasil não seja localista, consumismos quase tudo o que produzimos, hoje até parte do trigo é nacional (pequena parte, mas é) e deve continuar a ser localista. Nós temos que proteger com unhas e dentes nossa diversdade alimentar, nossas sementes nativas e guardar a sete chaves. Ouvi esta semana um representante da Via Campesina em Copenhagem acusar a Embrapa de ter entregue um banco imenso de sementes de milho nativas para a Monsanto, crime contra o patrimônio nacional. Os caras da Monsanto vão desaparecer com as sementes.

Mas a nível internacional, a ondinha localista dos gringos é protecionista do mal. Os localistas são os mesmos que impedem os avanços necessários para concluir a Rodada de Doha que está parada pela intransigência dos gringos de acabarem com os subsídios aos produtos agrícolas...

Perdão por tanto blábláblá, prometo que fico sem comentar nada por mais de um mês...

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