20/06/2011

Infantilização: leite condensado & jatobá

Sobremesa é um negócio dificil de se fazer. Conto nos dedos, dentre os restaurantes de que gosto, aqueles que oferecem sobremesas realmente instigantes, criativas, tecnicamente perfeitas. E faltam dedos nas mãos para aqueles que, caminhando bem no cardápio, atolam nas sobremesas medíocres que oferecem.

Diz a sabedoria culinária que sobremesa é uma especialização de profissionais hábeis em patisserie. Como os restaurantes pequenos e médios não comportam esse tipo de profissional em suas folhas de pagamento, as sobremesas ficam ao sabor do que o chef sabe sobre o assunto; e nem sempre sabem muito mais do que nós, clientes.

Sorvete de baunilha de algum fornecedor industrial, pudim de leite condensado, brigadeiros “renovados” e enfeitadinhos, qualquer-coisa com Nutella. Assim é fácil! Mas os donos dessas feiras de facilidades sempre argumentam em defesa própria: o público gosta! E a nossa questão é: por que o público tão frequentemente gosta dessas banalidades e por que o chef deve trabalhar no mínimo denominador comum se, fora das sobremesas, se orgulha da própria criatividade?

O máximo que alguns chefs conseguem esclarecer em defesa do uso amplo do leite condensado é que esse tem “sabor de infância”; assim como o Nescau tem “gosto de festa”, suponho. Esse parece ser exatamente o ponto: a regressão que certos sabores propiciam, infantilizando momentaneamente o consumidor através da rememoração.

Mas por que brigadeiro virou uma “moda”? Por que o público busca ser infantilizado no domínio dos sabores doces, a ponto de chefs e imprensa se curvarem com facilidade? Há até prêmios de revistas para o “melhor brigadeiro” da cidade, ano a ano (por que não a melhor pamonha, não é9?

É dificil ser exato nessa questão, mas eu gosto das reflexões do rumeno Matty Chiva, que foi professor de psicologia da criança, especializado nas relações entre emoções e gosto. Para ele, as emoções são uma dimensão essencial de nossa relação com os alimentos, isto é, a sensação física em resposta a um estímulo que provoca o sentimento; e esse sentimento pode, evidentemente, ser uma presentificação da memória.

O prazer ou desprazer tem origem numa sensação, uma mensagem sensorial, que é em seguida interpretada e ligada a uma emoção que se estrutura sobre três eixos: a percepção do gosto do alimento e as aptidões sensoriais do indivíduo; a dimensão do prazer/desprazer oferecida pelo próprio alimento; o aspecto imaterial, ou aquilo que pensamos sobre o alimento, suas virtudes ou perigos, relacionados com fatores de maturação biológica e fatores cognitivos.

O leite - associado ao leite materno - garante o sentimento de segurança da nutrição infantil. A partir de então, ensina Matty Chiva, a transformação do “consumivel” em “comestível” corresponde à construção cultural. E não há como negar que os adultos associam o doce ao prazer facilmente identificável, transmitindo essa associação às crianças.

Me emociona comer um jatobá - mais por esse torvelinho mental do tempo, da evocação forçosa de situações infantís, do que propriamente pelo gosto como consigo perceber hoje. Num experimento que fiz com alunos meus, ninguém conhecia o jatobá, e não conseguiu gostar dele ao primeiro contato. Só posso atribuir isso a diferenças sentimentais, não a diferenças sensitivas.

Claro, cada um tem sua “viagem infantil”, e posso admitir que o leite condensado esteja muito presente na infância da grande maioria de pessoas cuja experiência reporta a ele. O leite condensado, primeiramente complemento de dieta infantil, vendido em farmácias, decaiu quando, de novo, se valorizou o aleitamento materno. Foi quando a Nestlé inventou receitas para ele.

Talvez seja importante a regressão ao universo infantil que o brigadeiro ou leite condensado propiciam. Afinal, a infantilização do cidadão é uma linha de força da sociedade atual, identificável em vários domínios, até mesmo em como o Estado busca se apresentar (o “Estado-babysitter”). Não é demais supor que a própria alimentação, representada como uma zona cheia de perigos, tente resguardar o prazer escorrendo por esse túnel do tempo que nos coloca cara a cara com as memórias da infância. O leite condensando evoca o “cuidar” remoto.

Como não tive uma infância empapada em leite condensado, pude sentir o prazer regressivo ao comer, recentemente, um suspiro feito com jatobá, que Rodrigo Oliveira fez o favor de apresentar na reunião do Slow Food em seu restaurante.

Rodrigo é ousado, mas a maioria dos chefs, que pouco conhecem de patisserie, ao prestarem essa espécie de “serviço público” que é a regressão do afeto alimentar, conseguem também se aliviar da angústia de criar algo impactante num domínio para o qual não receberam o treinamento adequado. As modas possuem sempre funcionalidades.

2 comentários:

José Luiz disse...

O mascarpone é a nutella do futuro. Ou seria do presente?

Amanda Lopes disse...

Olá Carlos Alberto
Ótimo o seu texto, tanto que vou compartilhar no meu blog, acho que muitos restaurantes precisam melhorar e muito neste quesito, e vejo que hoje muitas empresas de fast food, pequenos cafés, padarias estão se modernizando e melhorando as suas sobremesas e vendo que isso no fim do mês representa um diferencial no faturamento. Agora a pergunta: quando os restaurantes sejam eles de alta gastronomia ou não vão equiparar as suas sobremesas com os pratos do menu?Abraços

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