31/03/2012

Almoço com as (três) estrelas - I

O senhor que me conduz num Lancia novíssimo não pronuncia palavra. Por aqui se chama “autista”, e é bom que seja mesmo mudo porque a viagem de Bologna até Modena, para encontrar Massimo Bottura, exige certa meditação preliminar, como sobre as perguntas a fazer. Dois dias antes, comera o seu menu de vanguarda, o “senzacioni”, e agora comerei o menu “tradizioni”. Há, portanto, muitas indagações. Mas chegamos logo. A 150 kms por hora o tempo apenas lambe o carro.

Por mero acaso, Massimo também vem chegando, a pé. É afetuoso, me abraça, e logo se interessa pela nova “maquina Lancia”, o que já é certo desvio dos padrões locais, pois é em Modena que está a fábrica da “máquina Ferrari”. Os italianos imaginam sempre que as suas são as melhores máquinas, sejam quais forem.

Em matéria de restaurantes, vi algumas cozinhas onde as maquinas não eram necessariamente italianas. Mas, após deixar a Lancia, Massimo me leva para ver a expansão da sua própria cozinha: “aqui será o vacuo. Aqui a patisseria. Uma linha separará claramente a cozinha do serviço”. Você vai ampliar o salão? “Não! Vou até diminuir um pouco. Quero apostar no serviço”.

É um homem dinamico, não pára um minuto; afável a atencioso, mostra que não foi contaminado pela síndrome das “3 estrelas”. E logo me encaminha para o maitre, que me conduzirá a uma mesa, preparada para mim no laboratório, que fica num prédio ao lado do restaurante. É uma deferência, sem dúvida. O maitre me acomoda, liga o som (Telonius Monk, por certo), serve agua e se retira. Logo volta com pães e um espumante original: vinho lambrusco em “kir” com aceto balsamico, água com gás. Aquele vinho, do qual não gosto, fica palatável... Sai, volta com uma entrada que consiste em mousse de mortadela e pão gratinado. Atrás dessa entrada vem Botura, pessoalmente, explicar o que vou comer.

Esse menu tradicional é um dos três menus degustação (tradizioni, classici, senzacioni) da Osteria Francescana, que recebeu esse ano a terceira estrela do Michelin. Quando comi o senzacioni, Massimo me convidou para experimentar também o tradizioni. Por isso estou diante dele novamente.

O “senzacioni” é sua cozinha de vanguarda, a busca do registro gustativo de vários produtos, combinados segundo uma idéia de equilíbrio própria do chef; o “tradizioni” são os pratos da tradição da Emilia-Romagna, procurando revelar o melhor deles sem perder a legibilidade da origem; o “classici” são os pratos consagrados pela clientela da Osteria Franscescana, aberta desde 1995.


“Ricordo di un panino alla mortadella” é o que tenho diante de mim. “O meu trabalho de revisitação da tradição é assim. O melhor ingrediente, como a melhor mortadela, com o pão de qualidade, trabalhado com as técnicas mais adequadas, produzindo a melhor recordação que se pode ter de um simples sanduíche de mortadela”. Em seguida vem o culatello Spigaroli de 40 meses de maturação, com prosciuto di Modena de 30 meses.


Fui visitar o sr Massimo Spigaroli, de uma familia que faz culatello há 150 anos, degustando os produtos mais simples e os mais sofisticados. O culatello de Massimo Botura descansa na cave escura, no subsolo de antigo castelo, por 40 meses, bem ao lado do culatello de Troisgros. Essas especialidades já levam nome no nascedouro, o que as torna únicas pelas especificações dos clientes de Spigaroli. Assim, o que Massimo Botura serve, além de um excelente produto artesanal, é um privilégio, um luxo na concepção moderna de luxo.

A mesma filosofia preside a confecção dos demais pratos: tagliatella al ragu, tortellini del dito mignolo in brodo, faraona (galinha d´angola), a costeleta impagável de porco rústico (mora romagnola lacatta all`aceto balsamico tradizionale di Modena) e assim por diante.

O aceto balsamico tradizionale é talvez o produto de maior refinamento da cultura gastronomia da Emilia-Romagna. Já aparece listado como dote ou herança no ano 1503 e é feito familiarmente, do mesmo modo hoje como antes. Nada tem a ver com os vinagres de Modena que compramos por aqui, no comércio.

Para fazer esse aceto é preciso 25 anos, muita paciência e rigor. Massimo Botura tem a sua produção, inclusive já destinada à sua jovem filha. Pois é com essa coisa única, que passa de geração a geração, que ele lambuza a costeleta de porco rústico que vem à mesa e desmancha na boca. Ao final de uma deglutição circunspecta, você tem o desejo de arranjar os ossinhos sobrantes, como ultima homenagem ao porco, ao aceto, ao cuoco...


Pergunto a Massimo se podemos fazer uma entrevista, e ligo o gravador. Começamos, e é com certa solenidade que ele explica que Bocuse já havia dito que quando a Italia descobrisse seus próprios ingredientes faria uma grande cozinha. “É o que procuro fazer, trabalhar a riqueza dos nossos ingredientes, como essa mortadela que você comeu. Não há exageros técnicos porque, no meu modo de ver, a técnica deve estar a serviço dos ingredientes, revelar o melhor deles, e não a serviço do cozinheiro. Você não comerá mortadela com um registro gustativo melhor do que essa que lhe ofereci”.

É fácil concordar. E me sinto animado a fazer outra pergunta: “O que é a cozinha italiana de Gualtiero Marchesi a Massimo Botura?”. Massimo senta ao meu lado, emprestando ares circunspectos à resposta. “Veja, Gualtiero Marchesi é mestre de todos nós. Ele deu novo status à cozinha italiana, foi um renovador incrível, em várias dimensões inclusive. Mas ele é milanes, cidade do design, e isso se faz sentir nos seus pratos também. Veja o riso al oro: uma clara referencia ao dourado das imagens sacras, uma construção estética sem igual. Ou, ainda, a magnifica pintura que é o prato da sepia branca sobre fundo negro. Era um prato que, além do sentido estético muito elaborado, valorizava um ingrediente vulgar como a sepia”.

“Você não acha que a referencia aos ingredientes locais se tornou um modismo?”, interrompo eu. “Bravo! Bravissimo!!”, exclama Massimo em aprovação ao rumo que toma a conversa.

“Veja, as pessoas que hoje valorizam os ingredientes locais são pessoas que não tem tradição de comer por prazer (imaginei que falasse de René Redzepi, capa da Time europeia naquela semana). A preocupação delas foi sempre a nutrição, não o deleite. Agora estão se pondo no caminho no qual sempre estivemos. A Emilia-Romana sempre foi atravessada por invasores, mas nossos dirigentes se ocupavam em manter as estradas em boas condições, de sorte que os invasores iam conquistar Parma ou Milão, só passando por aqui. Isso já era uma estratégia de conservação das nossas melhores tradições, que resistiram incólumes. E nós, cozinheiros modernos, trabalhamos sobre elas como sempre se trabalhou, procurando a apropriação do melhor. Para nós não é um modismo, mas um habito arraigado”.

“Bravo, bravissimo!”, penso eu me preparando para a próxima pergunta.

Podemos imaginar quanta coisa boa se criou, em matéria alimentar, ao longo dos milenios e, inversamente, o quanto se perdeu. Por isso é um verdadeiro mistério aquilo que faz certas coisas persistirem por séculos, mesmo quando as condições sociais em que surgiram já desapareceram.

Fiquei admirado ao conhecer a Consorteria dell´Aceto Balsamico Tradizionale, em Modena. O aceto balsamico é uma dessas coisas que já deviam ter desaparecido, mas persistem, e essa consorteria é uma das peças dessa engrenagem de manutenção.

Vários dos funcionários da consorteria são voluntários, o que mostra o apreço pelo aceto naquela pequena região. Na verdade, mais do que um produto de características gustativas singulares, trata-se de um modo de vida, ou parcela de um modo de vida.

A produção tradicional do aceto é uma atividade essencialmente familiar. Herda-se as barricas de aceto em produção e faz-se novas sequencias para os filhos. O ingrediente básico, portanto, é o tempo. O tempo e a vínculo familiar. Algo que leva 25 anos para ser produzido na sua melhor forma não pode mesmo prosperar sob domínio do capital.

A normativa que regula a produção do aceto DOP (denominação de origem protegida) é bem recente, de 2000, considerando que o produto aparece já em inventários e testamentos em 1500. Só agora, parece, ele está “ameaçado”, sendo protegido na sua originalidade.

O mosto de uma série de uvas regionais é cozido por 30 minutos a 80ºC, deixado a fermentar, filtrado, e depositado em barricas de madeiras da região. Cada barrica-mãe é seguida por uma série de outras barricas, em numero variável mas próximo de 6, em gradiente de tamanhos. As barricas possuem uma abertura por onde, ao longo do ano, evapora parte do liquido do aceto.

No ano seguinte, a segunda barrica é enchida com o liquido da primeira até 3/4, sendo que a primeira, de onde foi retirado esse produto, é completada até 3/4 com o novo aceto. Assim sucessivamente, ano após ano, avançando-se uma barrica por ano até completar a série. Dai em diante, segue-se por 25 anos no mesmo processo de completar com o liquido da barrica anterior aquilo que evaporou ao longo do período, introduzindo o novo produto apenas na barrica-mãe. Só no 25º pode-se retirar 2 litro de balsamico da última barrica! E dai em diante, mais 2 litros por ano, indefinidamente.

Consorteria dell´Aceto Balsamico Tradizionale possui uma acetaia sociale onde, além de um laboratório de analise, há uma sala onde certos produtores depositam suas barricas para que a entidade “tome conta” delas. Lá está, por exemplo, em gestação, o futuro legado de Massimo Bottura para a sua filha.

O mais importante: o aceto balsamico tradizionale, de 25 anos, não tem nada a ver com os que compramos no comércio para temperar saladas. Nada! É completamente outra coisa em sabor, textura, aromas e usos. Na região, pensa-se o aceto associado ao melhor queijo parmesão, a doces, frutas ácidas - nunca a saladas.

Se você for a Modena e, tendo pouco tempo, tiver que escolher entre uma visita ao museu Ferrari ou ao museu do balsamico, não titubeie: vá ao do balsâmico.


1 comentários:

Feraprumar disse...

Que delícia de entrevista. Muita informação de qualidade.

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