04/04/2012

O bálsamo do tempo

Podemos imaginar quanta coisa boa se criou, em matéria alimentar, ao longo dos milenios e, inversamente, o quanto se perdeu. Por isso é um verdadeiro mistério aquilo que faz certas coisas persistirem por séculos, mesmo quando as condições sociais em que surgiram já desapareceram.

Fiquei admirado ao conhecer a Consorteria dell´Aceto Balsamico Tradizionale, em Modena. O aceto balsamico é uma dessas coisas que já deviam ter desaparecido, mas persistem, e essa consorteria é uma das peças dessa engrenagem de manutenção.

Vários dos funcionários da consorteria são voluntários, o que mostra o apreço pelo aceto naquela pequena região. Na verdade, mais do que um produto de características gustativas singulares, trata-se de um modo de vida, ou parcela de um modo de vida.

A produção tradicional do aceto é uma atividade essencialmente familiar. Herda-se as barricas de aceto em produção e faz-se novas sequencias para os filhos. O ingrediente básico, portanto, é o tempo. O tempo e a vínculo familiar. Algo que leva 25 anos para ser produzido na sua melhor forma não pode mesmo prosperar sob domínio do capital.

A normativa que regula a produção do aceto DOP (denominação de origem protegida) é bem recente, de 2000, considerando que o produto aparece já em inventários e testamentos em 1500. Só agora, parece, ele está “ameaçado”, sendo protegido na sua originalidade.

O mosto de uma série de uvas regionais é cozido por 30 minutos a 80ºC, deixado a fermentar, filtrado, e depositado em barricas de madeiras da região. Cada barrica-mãe é seguida por uma série de outras barricas, em numero variável mas próximo de 6, em gradiente de tamanhos. As barricas possuem uma abertura por onde, ao longo do ano, evapora parte do liquido do aceto.

No ano seguinte, a segunda barrica é enchida com o liquido da primeira até 3/4, sendo que a primeira, de onde foi retirado esse produto, é completada até 3/4 com o novo aceto. Assim sucessivamente, ano após ano, avançando-se uma barrica por ano até completar a série. Dai em diante, segue-se por 25 anos no mesmo processo de completar com o liquido da barrica anterior aquilo que evaporou ao longo do período, introduzindo o novo produto apenas na barrica-mãe. Só no 25º pode-se retirar 2 litro de balsamico da última barrica! E dai em diante, mais 2 litros por ano, indefinidamente.

A Consorteria dell´Aceto Balsamico Tradizionale possui uma acetaia sociale onde, além de um laboratório de analise, há uma sala onde certos produtores depositam suas barricas para que a entidade “tome conta” delas. Lá está, por exemplo, em gestação, o futuro legado de Massimo Botura para a sua filha.

O mais importante: o aceto balsamico tradizionale, de 25 anos, não tem nada a ver com os que compramos no comércio para temperar saladas. Nada! É completamente outra coisa em sabor, textura, aromas e usos. Na região, pensa-se o aceto associado ao melhor queijo parmesão, a doces, frutas ácidas - nunca a saladas.

Se você for a Modena e, tendo pouco tempo, tiver que escolher entre uma visita ao museu Ferrari ou ao museu do balsamico, não titubeie: vá ao do balsamico.

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