Imaginemos algo insólito para a cultura ocidental: comer insetos. Quanto mais testemunhos de que formiga é agradável, mais vou me sentido acuado no meu pré-juízo de que insetos não são bons para comer. Finalmente, minha experiência pessoal me “liberta”: não gosto, mas reconheço que talvez não seja tão horripilante como inicialmente imaginei. Ou tomemos os jovens que debutam no consumo de cerveja: de algo desagradavelmente amargo a algo que auxilia na celebração da amizade. A superação de idiossincracias - eis uma trajetória quase inevitável na iniciação ao consumo na sociedade moderna.
Ultrapassar o umbral, eis a experiência típica do campo gastronômico. No entanto é necessário que esse trânsito se dê num espaço público, não como uma transgressão movida por uma individualidade atormentada, mas como autêntica iniciação. O status de gourmand confere ao sujeito uma aura de pureza: ele come o agradável e o belo, posicionando-se além da animalidade que move a alimentação. Como em todos os rituais de iniciação, é longa a preparação: cursos, sucessivas degustações, peregrinações por restaurantes reconhecidos como gourmets.
Mesmo na cozinha desses restaurantes se opera uma transformação. Um cozinheiro é um trabalhador do campo culinário. Até mesmo a hierarquia dentro da cozinha remete a tantas outras “linhas de produção” que se consolidaram durante o século XX. Assemelha-se a um proletário. Um chef, não. O fundamento do seu poder não é só o conhecimento ou maior experiência no ofício, mas o exercício de uma sensibilidade única no comando da execução culinária, assim como um maestro não é apenas um bom músico. Não que isso baste, mas será a matéria prima da sua projeção em outra esfera: o campo gastronômico.
O objeto geral sobre o qual versa o trabalho do chefs é a natureza ressignificada. Eles têm diante de si o que consideram os melhores ingredientes e matérias-primas, sem diferenciar entre uma coisa e outra, isto é, sem reconhecer que ambos são apenas diferentes momentos do processo conduzido pela infinidade de trabalhos humanos cristalizados na coisa. Assim, um brócolis maravilhoso, fruto talvez de séculos de seleção artificial, ingressa na cozinha como algo “natural”, “orgânico”, e o campo gastronômico se configura como um eterno começo. De um lado a técnica, a sensibilidade; do outro, a natureza bruta como o mármore. Neste sentido, a gastronomia é uma espécie de arte escultória.
(segue)
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