A recorrência de qualquer experiência vital, ainda que seja ultrapassando umbrais, acaba por cair na banalidade. A força centrípeta do campo gastronômico não esconde o seu duplo movimento: como um coração, pulsa numa sucessão de sístoles e diástoles. E, num momento de sístole, transborda dos restaurantes em direção a outros espaços.
O “desejo de comer bem” produz um verdadeiro exército de aprendizes de feiticeiros. Cursos amadores de cozinha, de enologia, se propagam como cogumelos após a chuva. Até a língua e seu vocabulário são afetados. Nunca antes se usou tanto a palavra “harmonizar”, que se insinua na vida até mesmo antes de um gole de cerveja.
Não é de desprezar o papel agregador que esse culto ao bem comer pode propiciar. Casais, que antes iam ao teatro ou cinema com frequencia, fixam um dia da semana para fazerem cursos de gastronomia, aprenderem a fazer risotos e assim por diante. Círculos de amigos se reunem, sob a feição de clubes, para celebrar em torno do novo hábito: comer ou beber bem.
Mesmo a tecnologia que, nos restaurantes, veio ao mundo como o arsenal mágico dos chefs, também transborda: já pode ser adquirida por qualquer um no comércio. Thermomix, PacoJet, termocirculadores - antigas varinhas de condão, ganham a banalidade de um abridor de latas, ainda que possam manter, por algum tempo, as marcas da origem gloriosa.
É natural que tudo isso deixe marcas até no corpo da cidade. No movimento de sístole, a expansão do bem comer atinge a própria arquitetura e engenharia. As “cozinhas gourmets” são os novos chamarizes do boom imobiliário e a marca distintiva de sofisticação da clientela das classes alta e média alta. Elas são a nova “sala de visitas”. Torna-las animadas, habitáveis, é o novo hobby e exerce-lo com maestria a nova onda na cultura do consumo.
(segue)
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