23/11/2012

A nouvelle cuisine de terroir - II


O exemplo de Gaston Acurio é de uma cozinha “imaterial”, um savoir-faire; o de Thiago Castanho, de uma cozinha de ingredientes únicos. Isso nos leva a considerar uma novidade importante que se estabeleceu recentemente: o movimentos de “patrimonialização” das tradições locais, que ganhou importância a partir de 1989, através da formação do Conselho Nacional das Artes Culinárias, dirigido pelo ministro da Cultura francês, Jack Lang e da definição de um política cultural correspondente. Do mesmo modo, a Unesco se engajou mundialmente na promoção do processo de patrimonialização de vários espaços culinários.

Este movimento criou uma novidade: a distinção entre patrimônio “material” e “imaterial”. Na verdade, não se trata de nada novo, pois a distinção já habitou  a antropologia, especialmente norte-americana, na primeira metade do século XX, contrapondo “materialistas” e “culturalistas”, de modo que a “novidade” restringe-se a chamar atenção dos estudiosos para o fato de que comida não é apenas um conjunto de ingredientes e receitas mas, sim, uma ampla experiência social que envolve constantes resignificações históricas, mitificações e mistificações, política, economia, etc. Em poucas palavras, além de um espírito crítico acurado, uma etnografia de ampla abrangência é um requisito básico para navegar esses novos mares.

Mas a compreensão moderna dessa dimensão da nouvelle cuisine de terroir exige um pensamento crítico, capaz de diferenciar a “patrimonialização” da “monumentalização”, isto é, do tratamento da gastronomia como herança elitista, saudosista, enfim, folclórica e referida a um contexto conservador. Julia Csergo chama a atenção para como Grimod de La Reynière faz da memória de um território e seus homens um elemento da “glória nacional” (Julia Csergo, “O patrimônio gastronômico na França: como pensar um monumento, do artefato ao mentefato?, in História. Questões & Debates, nº 54, Curitiba, 2011).

Mas é inegável que o pensamento crítico também reconhece nessa iniciativa do Estado francês um novo ponto de partida, ou uma tomada de fôlego para inúmeros estudos instigantes. A publicação Les frontières alimentaires (CNRS, Paris, 2009), organizada por Massimo Montanari e Jean-Robert Pitte é exemplo desse dinamismo. 

A coletânea traz, entre vários, um excelente estudo de Alessandro Stanziani sobre a origem das apellations régionales dos vinhos franceses, além de um ensaio de Frédéric Duhart e F. Xavier Medina sobre a paella, sua origem local, difusão na Espanha e na França. Ficam claros, nesse trabalho, a interferência do turismo e do Estado na própria definição e difusão de uma certa ideia de paella.

Me ponho a pensar na dificuldade que temos ainda de compreender a feijoada. Vemos nela uma síntese multiétnica que não houve; um nascimento na senzala que tampouco aconteceu. Um belo tema de estudo para quantos se ocupem da noção de patrimônio alimentar.

Primeira parte

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