01/12/2012

Em defesa do Kinoshita e pelo controle das agências públicas de vigilância sanitária


Vigiar e punir são funções precípuas do Estado na defesa do bem público. No tocante à saúde, porém, ele tem desenvolvido concepções e práticas próprias, que não coincidem com o bem público. Isso porque a esfera de decisão das autoridades responsáveis por esses serviços consagra garantias legais de ampla liberdade para os seus agentes. Não prestam contas à sociedade, não são transparentes em seus movimentos.

Assistimos, no momento, à mais ampla desmoralização da Anvisa. A sua defesa tornou-se impossível depois que veio a público o favorecimento de produtores de defensivos agrícolas com alto grau de toxidade. Em artigo de hoje na Folha, a senadora Katia Abreu descreve, em detalhes, os descaminhos da agência, lembrando que já em 2007 advertiu publicamente “que havia corrupção, proteção, lobby, reserva de mercado ou qualquer outro nome que se quisesse dar ao favorecimento de empresas por parte de servidores da Gerencia-Geral de Toxicologia”. A agência se tornou um instrumento de favorecimentos que tem como um de seus resultados a intoxicação da população. De nada adiantou uma denúncia pública: prevaleceu a omissão do governo, sempre em defesa incondicional dos seus servidores.

Podemos então, legitimamente, duvidar de todas as suas ações de classificação de riscos à saúde. Por exemplo, quem pode garantir que a proibição relativa ao queijo Minas de leite cru não atenda a pressões de grandes laticínios pelo controle estrito do mercado? A base do poder da agência é uma delegação de competências que se apoia na ideia imprecisa de isenção e impessoalidade das suas normas. Isso, está claro, veio ao chão agora. A partir disso, sua credibilidade é igual a zero.

A mesma suspeição pode ser levantada contra a Divisão de Crimes contra a Saúde Pública, da Polícia Civil de São Paulo, ao investir contra o restaurante Kinoshita, a partir de denúncia anonima que permitiu apreender alimentos com data vencida - conforme notícia a imprensa de hoje. Que escala de valores é essa onde uma denuncia anonima vale mais do que uma denúncia pública, como a feita há 5 anos pela senadora?

Eu mesmo, há muitos anos, fui vítima de uma inspeção similar do DECON, que encontrou, num restaurante do qual era sócio, um pacote de fígado de galinha, congelado e “vencido”. Acontece que não havia no cardápio qualquer prato derivado dessa matéria-prima. Assim mesmo, tive que fugir de modo humilhante pela porta dos fundos do restaurante para não ser preso, como foi agora o gerente do Kinoshita, e, depois, recebi telefonemas pedindo uma soma expressiva para que não fosse instaurado o inquérito policial. 

Não aceitei a chantagem e resolvi denuncia-la a altas autoridades do governo estadual. Mesmo assim, instaurou-se o inquérito (com razão, diziam essas autoridades, inquérito não é algo que se possa - ou deva - sustar politicamente) e tive que gastar mais com advogados do que os policiais corruptos pediram inicialmente. Felizmente, a denuncia não foi aceita pelo Promotor Público e o caso encerrado. Não faltaram, porém, os que me chamavam de “trouxa”. 

Essa minha experiência, como a atual de Murakami, mostram o que é estar à mercê da dita “fiscalização”. O que é uma “denuncia anonima”, por exemplo? Por acaso um vizinho entrou escondido no restaurante e vasculhou as geladeiras? Um funcionário demitido procurou se vingar? O item “vencido” foi submetido a análises e se constatou perigo para a saúde pública? Nada disso pode ser respondido pela polícia de forma convincente, de modo que prevalece o odioso arbítrio, como aquele que, na Anvisa, favorece produtores inescrupulosos de venenos.

A polícia sanitária hoje envenena a cidadania. Está claro que a vigilância deveria se compor de organismos fiscalizadores e orientadores. Deveria buscar irregularidades de forma sistemática, advertir, determinar prazos para a correção, estabelecer protocolos de ajuste de conduta, impor multas progressivas e cada vez mais severas por reincidências e assim por diante, antes de inaugurar uma fase judiciária. Nunca dispor de um poder que não está submetido a qualquer princípio além do arbítrio. A vigilância sanitária deveria agir segundo programação de inspeções, previamente anunciadas; não movida pela paixão das denúncias anonimas, cujos propósitos são sempre duvidosos.

A imagem pública de um restaurante como o Kinoshita é provavelmente o maior valor do empreendimento. Um valor intangível mas expressivo. Submete-lo a essa ação arbitrária equivale a investir contra esse valor de modo irresponsável, tentando destrui-lo. Assim como fazem fiscais quando ateiam fogo a carregamentos de queijo Canastra na fronteira entre Minas Gerais e São Paulo, ou quando destroçam barracas de vendedores de rua. O poder público não tem o direito de incendiar reputações!

É mais do que hora de controlar o poder de polícia nas áreas relacionadas com a saúde pública. Poder de polícia e de decisões administrativas que, está visto, escondem mecanismos sórdidos de favorecimento, de corrupção, de destruição de valores legítimos de suas vítimas.

A reputação do Kinoshita não será abalada, graças ao grande prestígio pessoal dos seus sócios - Tsuyoshi Murakami e Marcelo Fernandes - e da solidariedade de seus clientes que sabem que, ali, sua saúde está garantida. A agressão que sofreu só mostra como a polícia, descontrolada, joga alto. É hora de disciplina-la, através da restrição do poder arbitrário que hoje possui, definindo procedimentos de caráter orientador e de penalização financeira progressiva. É urgente rever a legislação que protege o arbítrio e a corrupção instalados em órgãos de fiscalização e licenciamento!










18 comentários:

Beatriz Marques disse...

Excelente artigo, Dória. Compartilho suas ideias, sem tirar nem colocar uma só vírgula.
Ontem fui ao Kinoshita para prestar solidariedade ao Murakami, pois acompanho seu trabalho de longa data (e nunca passei mal). Fiquei feliz de ver o restaurante lotado, equipe animada, mas dava para sentir a dor dele...
bjs

e-BocaLivre disse...

Bia, é hora de dizer basta! Chega de tiranetes de repartição!! Além do mais, truculentos "dentro da lei"...
Bjs

Cláudio Gonzalez disse...

Dória, concordo com seu ponto de vista, mas ao contrário da Bia, agregaria outra reclamação: a mídia, ao noticiar as coisas de forma sensacionalista, não só em relação ao caso Kinoshita, mas em tantos outros episódios de destruição de reputações, acaba sendo um dos braços ativos deste processo. Ninguém está querendo que os fatos não sejam noticiados, mas fazê-lo de forma policialesca é uma atitude da qual eu, como jornalista, sinto vergonha. O Murakami ainda deu sorte do pessoal da Vigilância não ter chamado uma equipe de TV para "acompanhar a batida no restaurante chique". Minha solidariedade a ele.

Paula Ribeiro disse...

Boa tarde a todos.
Também acho que foi sensacionalista. Mas porque com hotéis a fiscalização é mais pesada indo várias vezes e nos restaurantes de Rua indo poucas vezes? Porque o chefs não usam tocas no cabelo nos restaurantes de rua? Chefs com calças jeans? Barbados? Com cavanhaque? Tênis? Nos hotéis são proibidos. Posso falar de muitas coisas mais.....eu acho que etiqueta vencida e muito complicado. Cadê o chef? É sabido que a maioria não fica no restaurante....

Desculpem....mas é a realidade.

Rildo Gonçalves disse...

Dória, é sempre importante ter alguém como você a chamar a atenção de atrocidades que são cometidas pelo desmando de nosso poder. O caso da queijo é escabroso, como é o da semente de papoula, como já foi o da flor de sal, e tantas outras mazelas que a ANVISA se arvora no direito de proteger. Que sua voz multiplique-se, como já o da Roberta no caso da flor de sal, e chegue a quem deve chegar.

Ana Massochi disse...

TODOS AO KINOSHITA

Anônimo disse...

Dória,

Uma pequena correção: é atribuição do Ministério da Agricultura a fiscalização do queijo canastra nas fronteiras de MG e proibição de venda a outros estados. Dentro dos municípios (restaurantes, supermercados, feira, etc) quem atua são as vigilâncias sanitárias ligadas ao Ministério da Saúde. A Anvisa também é ligada à Saúde.

Paula Ribeiro disse...

Atrocidades? Rildo me desculpe foi encontrado comida sem etiqueta no melhor restaurante de São Paulo. No melhor!!!!!!! Vamos ser racionais. Isso serve para o chef pensar e fiscalizar mais a sua cozinha. O que escrevi no outro comentário é real. Não cumprem.... se vc for na rua Amauri ou nos jardins verá os cozinheiros fumando, sentados nas calçadas com a roupa que trabalham. Tem que fiscalizar sim. Mas fiscalizar todos. Mas todos mesmo e na Europa também. Isso é geral.....

Lucas cs disse...

Concordo Dória, conheço o restaurante, o Chef e ja tive a oportunidade de transitar para conhecer a cozinha do Kinoshita, me parece muito estranho a idéia da denuncia anonima...Estou com o Murakami e sua equipe e não abro, sei como funciona o controle em um restaurante desse calibre. Sensacionalismo sujo.

e-BocaLivre disse...

Agradeço os vários comentários. Só desejo reafirmar aqui uma questão: é preciso distinguir a discussão das normas sanitárias vigentes - muitas delas absurdas, todos sabemos - e a sua APLICAÇÃO. Sou a favor de uma fiscalização intensa mas de caráter orientador. Nada de polícia! Se você cai na "malha fina" da Receita Federal, a polícia não invade sua casa para prende-lo. Você será responsabilizado e penalizado e a possibilidade disso favorece que você ande na linha. Por que a fiscalização sanitária precisa do poder de polícia? Claro, poderia ser muito mais civilizada e convincente, sem truculência. É disso que se trata, é isso que o "caso Murakami" nos impõe como discussão.

Luiz Horta disse...

Muito bem, Carlos! Parabéns! Eu nunca comi maravilhosamente no Kinoshita, mas vejo também um ódio nas redes sociais ao Murakami, por ele ter "traido" a Liberdade. Como se fosse um absurdo ele querer ganhar dinheiro com o talento dele e fosse obrigado a ficar eternamente em pé num balcão pequeno nua rua perigosa da Sé, só para alegrar foodies informados, periquito cozinheiro amestrado para os culturatti da comida.
E abaixo a arbitrariedade, ou fiscaliza direito ou não fiscaliza nada, o que o Estado vigiador está buscando não é a proteção da saude de ninguém. Otimo e lúcido texto. Abraço, apoiado. Luiz Horta

e-BocaLivre disse...

Obrigado, Luiz.

Anônimo disse...

Até o Tsuyoshi admitiu falha.
Eles erraram. Mesmo se foi armação de funcionários descontentes, eles erraram.
Não estamos falando de atendimento, sabor, experiência gastronômica. Estamos falando de saúde e higiene.
Eles sempre estiveram na mídia nas horas boas. É natural estarem na mídia agora na hora ruim também.
Não vejo sensacionalismo nenhum.
A Anvisa como todas as demais agências estão péssimas, mas a polícia fez o seu trabalho.
Eu vou nesse restaurante desde a Liberdade e devo continuar indo. Mas eles tem que fazer melhor.
Eles podem fazer melhor que isso!!!!

e-BocaLivre disse...

Anônimo, você tem certeza de que necessita da garantia policial para comer bem?

Anônimo disse...

Que besteira, falar que encontraram um pacote de figado de galinha no seu restaurante? isso é igual a achar 80 kilos de alimentos vencidos??

Pagar mais de 500 reais reais para comer produtos vencidos??

Acordem!!!

Anônimo disse...

Doria, a discussão está aberta.

É sabido que inúmeros, repito: inúmeros donos de restaurantes molham a mão da fiscalização para não sofrerem consequências deste tipo citadas. O Murakami reconhece seu erro, mas afirma que há exagero por parte da polícia. Eu concordo.

Não acredito que a polícia civil esteja preparada para fazer este trabalho. E segundo li, não foi a Vigilância Sanitária que fez, e tem feito estas investigações/inspeções.

Já imaginaram vocês, chefs que me leem, todos os seus peixes frescos, que chegam nos isopores - tudo sem sif, sendo fiscalizados e imediatamente confiscados?

Vocês tem sif de tudo o que servem no restaurante?

Não há investigação dos casos por medo de repressão por parte dos restaurantes. Donos não conseguem cumprir tudo o que a lei exige e quando são autuados, pagam para não ver seus rostos na capa de jornal. Corrupção gerando corrupção. Ninguém tem a coragem de falar que já pagou. O deferido restaurante, pelo que tudo indica, não pagou.

Fico perguntando como alguns "gastros sei lá o que" e blogueiros conseguem acreditar que de fato havia 80 kilos de comida vencida?

Quanto aos gastrocults: vocês deveriam visitar a cozinha e o estoque de todos os pé sujos da cidade. Sabe aquele peruano cool e barato da cracolândia... Queria ver a polícia civil entrando lá!

Adendo: quando os chefs brasileiros vão cozinhar fora do país levam ingredientes na mala. Verdade ou mentira?

SIF é o que mesmo? Acorda Brasil!
Aliás, o cachorro quente continua firme forte.

E se a polícia civil baixar no "O Mercado" neste próximo fim de semana?


e-BocaLivre disse...

Anônimo, saiba que nem tudo requer SIF. A legislação não é essa. E esse negócio de "a policia civil baixar" é que precisa acabar. Restaurante não é boca de fumo.

Anônimo disse...

Em são paulo existem dezenas de milhares de estabelecimentos que servem alimentos. São todos fiscalizados pelos mesmos critérios?

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